(Essa postagem foi originalmente criada para uma postagem no subreddit r/rpg_brasil em 01/09/24. Transcrevo para o blog a fins de preservar o texto, com algumas modificações.)
(Essa postagem foi originalmente criada para uma postagem no subreddit r/rpg_brasil em 01/09/24. Transcrevo para o blog a fins de preservar o texto, com algumas modificações.)
Título original: "Diegesis in TTRPGs, (OR why I don’t oppose meta-gaming or table-talk – any more!)" Escrito originalmente por Bragrman no seu blog intitulado "Bragrman's Sidequest" em 7 de agosto de 2017.
Entre os vários grupos de Facebook e fóruns sobre jogos que eu participo, os tópicos do metajogo e da discussão na mesa aparecem semanalmente e costumam ser iniciados por Mestres relativamente novos procurando por sugestões de como controlar e até mesmo "punir" jogadores que se envolvem nessas práticas. Eu entendo como eles se sentem, porque eu já estive nesse lugar, mas ao longo dos anos acabei entendendo que essas estratégias não só contrariam a natureza e o espírito dos RPGs, mas também que a própria oposição ao metajogo e às discussões na mesa são uma oposição a elementos essenciais da experiência de jogo.
A principal razão pela qual Mestres reclamam que jogadores se envolvem em metajogo ou discussões na mesa é que isso acaba com o suspense, a surpresa ou a tensão que o Mestre está tentando criar ao ocultar informações dos jogadores, que fazem isso para permitir uma revelação dramática ou um acontecimento inesperado em algum ponto do jogo. Embora a intenção dos Mestres nesse caso seja algo positivo, acredito que eles estão buscando pelas ferramentas erradas para criar a tensão, o suspense ou o drama desejados, e que a razão principal para estarem buscando as ferramentas erradas se deve à maneira como eles veem a experiência de jogo.
Explorando o conceito de Diegesis em RPGs, pretendo explicar por que a discussão na mesa e o metajogo na verdade não são tão problemáticos quanto muitos pensam ser, e de fato, eles devem ser abraçados como partes essenciais da experiência de jogo que podem tornar a coisa toda mais agradável para todos os envolvidos.
Primeiro, algumas definições:
A expressão "Discussão na mesa" tem suas origens nos jogos de cartas, particularmente no Bridge, no qual conversas não relacionadas ao jogo podem ser usadas para enviar sinais ao seu parceiro sobre as cartas na sua mão; isso constitui efetivamente uma forma de trapaça em um jogo competitivo. Nas discussões sobre RPGs, a discussão na mesa também é frequentemente identificada como uma forma de trapaça. Eu discordo da ideia de que isso é trapaça, e insisto, no sentido contrário, de que é um elemento essencial de jogar um RPG.
O metajogo é igualmente criticado por muitos como uma forma de trapaça. É importante notar aqui que o termo metajogo é usado para descrever uma grande gama de comportamentos que compartilham o elemento comum de “jogadores usando conhecimento do jogo que o seu personagem não deveria ter”, mas variando em extremismo, novamente, com base em como o Mestre e o jogador entendem a natureza da experiência de jogo. Mais adiante neste artigo, explicarei como o metajogo pode ser visto tanto como uma necessidade intrínseca do jogo quanto o resultado de uma pessoa que na verdade se recusa a jogar o RPG, dependendo do seu grau de envolvimento com a diegesis do jogo.
Antes de desenvolver esses pontos, preciso delinear alguns pontos-chave:
Todos os RPGs, desde aqueles mais parecidos com jogos de tabuleiro focados em masmorras até os LARPs sem sistema, contém os elementos básicos de uma história; um ou mais personagens (personagens), fazendo coisas (ação), em um ou mais lugares (cenário). E cada história é composta por dois elementos, Enredo e Narrativa.
“Enredo” são os eventos relevantes da história na ordem em que aconteceram, e “Narrativa” refere-se, grosso modo, à maneira como os eventos são apresentados.
Em um RPG, tudo o que um Mestre e um jogador fazem é uma contribuição para uma narrativa e um enredo colaborativos, e é esse processo de colaboração que define a experiência de jogar um RPG.
Quando um jogador diz que seu personagem escolhe abrir a porta à direita, seguido pelo Mestre dizendo que o som da porta abrindo acorda o ogro adormecido do outro lado, eles estão construindo conjuntamente o enredo de sua história colaborativa.
Quando o jogador descreve a ação do seu personagem de uma maneira qualquer, ele está criando a narrativa, desde o simples “Eu/meu personagem abre a porta à direita” até o mais elaborado “rastejando pelas sombras dançantes projetadas pela luz vacilante da tocha, o robusto Grunthold se aproxima da porta mais à direita e, após colocar a tocha no suporte enferrujado preso na parede, segura o cabo de seu martelo de guerra em uma mão e com a outra empurra com força para abrir a porta...”
Minha proposição é que, para a vasta maioria dos grupos e jogos de RPG por aí, a co-criação de uma história colaborativa é um aspecto inevitável e, de fato, definidor da maneira como o jogo é jogado. O que tende a variar, em vez disso, é o grau com que os participantes de cada jogo encaram a sua experiência de jogo como sendo dessa maneira.
Enquanto alguns compararam isso ao clássico tropo dos deuses olímpicos sentados ao redor de uma mesa jogando um jogo de xadrez divino com mortais, eu sinto que essa imagem sugere uma expectativa de competição entre os jogadores e seus personagens.
Em vez disso, prefiro pensar em um RPG de maneira semelhante à equipe de produção de um filme, programa de TV ou produção teatral – os jogadores são os produtores colaborativos da história sendo jogada, mas são simultaneamente o público para cujo entretenimento a história está sendo produzida.
Uma vez que você vê seu RPG como sendo inerentemente um exercício de contação de história colaborativa, você também está se envolvendo em outros dois elementos intrínsecos de tal experiência…
Diegesis refere-se a qualquer coisa contada por um narrador em uma história, geralmente incluindo as ações e pensamentos dos personagens. O termo foi detalhado pela primeira vez por Platão, porém, em uma linguagem mais contemporânea, particularmente inspirada pelo cinema, um elemento diegético da história é aquele que existe dentro do mundo da história, enquanto elementos não-diegéticos são aqueles que existem fora do mundo da história, mas que são incluídos em função do público.
Um exemplo comum é o da música. Se um personagem em um filme está ouvindo rádio, então a música que ele ouve seria uma música diegética. Mas se o público consegue ouvir uma música que o personagem não consegue (o que descreve a maioria das músicas em filmes), então essa é uma música não-diegética.
Quando se trata de RPGs, o ato de jogar o jogo também possui elementos diegéticos e não-diegéticos, e ambos são partes intrínsecas do jogo que, em última análise, são inseparáveis entre si.
Primeiramente, o conhecimento e a aplicação das regras por parte do jogador, o ato de rolar os dados, mover miniaturas em um mapa, questionar ou esclarecer as regras, ou discutir elementos do jogo são todos exemplos de jogabilidade não-diegética. O ato de criar um personagem é uma parte não-diegética do jogo, estabelecer e aderir às regras é jogabilidade não-diegética e, essencialmente, qualquer conversa entre os participantes que não seja especificamente parte do jogo sendo jogado em um determinado momento é jogabilidade não-diegética.
Esses elementos de jogabilidade não-diegética existem para dar forma à jogabilidade diegética, que é a construção da história colaborativa ocorrendo dentro do mundo fictício do seu jogo. Sem ter criado um personagem ou conhecer as regras que governam suas possíveis ações, um jogador não consegue decidir sobre as ações de seu personagem nem tem a oportunidade de esclarecer seu entendimento conforme se relaciona com o jogo.
A maneira como você joga seu jogo pode situar-se em qualquer ponto de uma escala móvel entre os elementos diegéticos e não-diegéticos da jogabilidade, preferindo um sobre o outro ou tentando encontrar um equilíbrio no meio. Não há uma quantidade certa ou errada de foco que se deve colocar em cada elemento, exceto aquelas que se adequam às preferências dos participantes de um jogo específico – mas ambas estão, intrinsecamente, inevitavelmente, presentes no seu jogo em algum grau.
Deveria parecer uma afirmação bastante óbvia a esta altura, que, enquanto o personagem é primariamente um elemento diegético do jogo, o jogador e seu envolvimento com o jogo constituem ações de jogabilidade não-diegéticas.
É absolutamente impossível para um jogador ser parte da jogabilidade diegética. Até mesmo os LARPers mais dedicados ainda são jogadores representando eventos fictícios, limitados por regras de jogo que não estão presentes dentro da ficção (por exemplo, usando espadas de espuma ou regras de combate seguro para reger o jogo). Sendo assim, por mais que a barreira entre a jogabilidade diegética e a não-diegética possa variar, ela sempre existe em algum grau.
O que importa para todos os Mestres e jogadores é que esteja clara a delimitação dos elementos diegéticos e não-diegéticos em seu jogo.
Como dito anteriormente, toda atividade dos jogadores, em última instância, manifesta-se na moldura diegética do jogo; os personagens tomam certas ações e são bem-sucedidos ou falham em seus esforços com base nas ações de jogabilidade não-diegéticas dos jogadores, conforme eles contribuem para a história coletiva.
Por mais que os desafios que existem dentro dessas histórias sejam primariamente desafios diegéticos para os personagens, isso não impede o Mestre de incorporar desafios não-diegéticos que são destinados ao jogador para que ele se envolva e resolva.
Exemplos comuns incluem quebra-cabeças de lógica ou de linguagem que os personagens encontram, mas que os jogadores têm a chance de resolver como parte da jogabilidade não-diegética. Eles então serão bem-sucedidos ou não, momento no qual o jogador pode usar as estatísticas de seu personagem e os mecanismos de jogo relacionados para alcançar uma solução diegética para o quebra-cabeça.
O importante é lembrar que, independentemente de os desafios de um jogo serem abordados como parte da jogabilidade diegética ou não-diegética, o resultado final é, em última instância, parte do jogo diegético, contribuindo para a construção da narrativa e do enredo colaborativos.
A discussão na mesa, portanto, deve ser vista como parte da jogabilidade não-diegética e como um elemento intrínseco do jogo.
Para que os personagens tomem a ação diegética mais apropriada, um jogador talvez precise esclarecer o que entende de uma tal situação, de regras específicas, etc.
Ao abraçar a conversa não-diegética – mesmo no meio de ações de combate – você está dando aos jogadores a chance de tornar suas ações diegéticas mais ricas e mais relevantes para a história. Gerenciar o tempo e o ritmo do jogo é algo que precisa ser levado em conta, mas novamente, este é um elemento de jogabilidade não-diegética que deve ser trabalhado dentro do grupo, ao invés de ser imposto pelo Mestre.
Eu também acho que essa conversa é essencial para ajudar pessoas que são novas no grupo, no jogo ou até mesmo no próprio hobby de que o seu envolvimento é bem-vindo.
(Nota – discussão na mesa é um pouco diferente de ‘conversa fora de tópico’ (“conversa off-topic”). Se você está tentando conduzir/jogar um jogo e alguém na mesa não para de falar sobre a partida de esporte de ontem à noite ou traz seu kit de artesanato para fazer fantasias para seu gato de estimação, isso não é ação não-diegética, é um problema completamente diferente.)
A definição de metajogo é problemática, mas, pelo menos da perspectiva do Mestre, quando se entende a experiência de RPG como engajamento na jogabilidade não-diegética para criar o enredo e a narrativa diegética, e se preparam os desafios do jogo de forma apropriada, a maioria das formas de metajogo se tornam parte da jogabilidade não-diegética e podem rapidamente deixar de ser um problema.
Em última instância, quando o Mestre e os jogadores entendem jogar um RPG como um exercício colaborativo na co-construção do enredo e da narrativa dentro dos limites de um jogo, cenário ou sistema específico, o conhecimento dos jogadores não é algo que ameaça interferir nos planos do Mestre, mas sim tem o potencial de melhorar a história que surge da colaboração.
Quando o jogador sabe algo importante sobre o mundo do jogo que seu personagem não sabe, isso pode modificar a decisão do jogador a fim de direcionar seu personagem a tomar ações que possam resultar na obtenção dessa informação, e essa busca – a contribuição do jogador tanto para o enredo quanto para a narrativa do jogo – dá ao Mestre um estímulo para construir novos sub-enredos e arcos de história.
No extremo mais problemático da escala do metajogo, você pode encontrar comportamentos tais como jogadores que ignoram o cenário diegético quase completamente e partem para perseguir seus próprios objetivos, independentemente da história coletiva, ou que insistem em usar soluções puramente não-diegéticas para desafios diegéticos. Tais indivíduos muitas vezes parecem ter uma visão competitiva do que significa jogar um jogo, e estão jogando para vencer de acordo com sua própria definição do que isso significa.
Meu argumento é que tais indivíduos na verdade não estão jogando o jogo. Se o jogo consiste nas regras, cenário e ficção específica de uma determinada sessão, então recusar-se a engajar-se de forma apropriada com todos os elementos é, no melhor dos casos, engajar-se com uma versão incompleta do jogo. É como alguém aparecer em um campo de hóquei com um ornamento de jardim em forma de flamingo rosa em vez de um taco de hóquei, enquanto ainda espera ser levado a sério.
Nesses casos, o problema provavelmente está nas dinâmicas sociais e nos relacionamentos pessoais, e não especificamente no jogo em si, e a longo prazo, tais indivíduos precisam ser levados a uma compreensão mais colaborativa da atividade na qual estão participando ou, nos piores casos, serem excluídos.
Então, se você está usando informações previamente desconhecidas para criar uma “reviravolta” na sua história, ou como uma maneira de introduzir drama e tensão no jogo, o que um Mestre pode fazer para tornar o jogo uma experiência interessante para os jogadores?
Para a maioria dos jogos, os resultados aleatórios das rolagens de dados fornecem grande parte da tensão, desde que as mecânicas dos encontros e dos desafios estejam em um nível adequado para os personagens dos jogadores - O desafio é tratar o resultado das rolagens de dados não apenas como “vitórias” ou “derrotas”, mas como estímulos para a próxima ação no enredo ou no estilo da próxima parte da narrativa.
O Mestre pode fornecer desafios adicionais aos jogadores incorporando desafios não-diegéticos para eles resolverem, porém, em RPGs o resultado final de qualquer desafio deve se desenrolar de forma diegética. Se você, como Mestre, fizer o sucesso ou fracasso depender puramente do conhecimento e das habilidades dos jogadores, sem pelo menos permitir uma opção para utilizar as regras que governam o mundo diegético, então, como o Jogador do Flamingo Rosa, você provavelmente também não está jogando o mesmo jogo que seu grupo.
No entanto, como Mestre, o que você pode fazer é definir a gravidade da situação a partir das ações dos personagens. Cada campanha, sessão, história ou até mesmo ação podem ter impactos claros que dão ao jogador e ao personagem uma justificativa para as coisas que eles fazem no jogo.
No combate, a gravidade já está claramente definida. Vença e seu personagem sobrevive e geralmente obtém coisas novas. Perca e ele provavelmente morrerá ou sofrerá algum outro revés.
Mas por que eles estão lutando, em primeiro lugar? Qual será o impacto, em sentido mais amplo, se eles vencerem, perderem ou empatarem?
Quando você vê os RPGs como uma experiência colaborativa, essas perguntas rapidamente fornecem meios para o drama, a tensão e para resultados inesperados que não podem ser duplicados de nenhuma outra maneira.
Mas isso é um tópico para uma futura postagem.
NOTA: Esta postagem foi amplamente revisada após várias discussões com outros jogadores no Reddit e nos fóruns da Onyx Path. Agradeço a todos que questionaram algumas das ideias iniciais e que ajudaram a trazer clareza ao texto.