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 Título original: "Tucker's Kobold". Editorial escrito originalmente por Roger E. Moore na revista "Dragon", edição número 127, Vol. XII nº 6, publicada originalmente em 02 de novembro de 1987. 

Traduzido por Felipe Tuller. 


O editorial deste mês é sobre os kobolds de Tucker. De vez em quando, recebemos cartas pedindo conselhos sobre como criar aventuras para personagens de níveis altos em AD&D®, e os kobolds do Tucker parecem se encaixar perfeitamente nessa proposta.
Muitos personagens de níveis altos não têm muito o que fazer porque não se sentem desafiados. Eles bocejam diante de um tarrasque e precisam ser mantidos acordados à força quando um lich aparece. Os Mestres envolvidos não sabem o que fazer, então acabam ignorando o problema, e os personagens caem no Limbo dos Personagens. Chegar a níveis altos é difícil, mas fazer coisas interessantes depois de chegar lá é ainda pior.
Um dos principais problemas no design de aventuras é criar oponentes que consigam desafiar personagens poderosos. Monstros únicos, como tarrasques e liches, são fáceis de enfrentar em grupo; a equipe pode concentrar seus poderes no alvo até que ele caia morto com as patinhas para cima. Tentar criar monstros mais poderosos do que um tarrasque é declarar derrota; se o grupo matar seu supermonstro, o que você vai fazer depois? Chamar a mãe do mostro? Isso não funcionou com Beowulf, e provavelmente também não vai funcionar aqui.
Pior ainda: supermonstros individuais raramente precisam pensar. Eles apenas usam sua confiável e previsível sequência de ataques garra/garra/mordida. Isso não deveria ser o padrão de qualidade de uma campanha. Esses jogos perdem força porque não oferecem desafios aos jogadores, nem estímulo mental — nem um perigo real.
Em todos esses jogos que eu já presenciei, os piores, os mais horríveis, os mais terríveis inimigos que enfrentamos eram, muitas vezes, mais fracos do que os personagens que lutavam contra eles. Eram apenas seres bem armados e inteligentes, interpretados pelo Mestre de maneira a serem absolutamente implacáveis e astutos. Os kobolds do Tucker eram assim.
Tucker mestrava uma masmorra incrivelmente perigosa na época em que eu estava destacado no Forte Bragg na Carolina do Norte. Essa masmorra tinha corredores que transformavam todos os nossos burros de carga em demônios flamejantes gigantescos ou que lançavam o grupo inteiro em piscinas de ácido, mas os demônios pareciam brincadeira de criança se comparados aos kobolds do Nível Um. Esses kobolds eram apenas kobolds normais, com 1d4 pontos de vida e tudo mais, mas eles eram malvados. E quando eu digo malvados, quero dizer maus mesmo, Jim. Eles se formaram magna cum laude no Instituto Sauron para Criminosos Crueis.
Quando entrei no grupo de jogo, alguns dos personagens já haviam encontrado os kobolds do Tucker, e eles não estavam nem um pouco ansiosos para repetir a experiência. O líder do grupo examinou o mapa da masmorra que eles haviam criado e tentou encontrar alguma forma de evitar os tais bichinhos, mas era impossível. O grupo se resignou a tentar correr pelo Nível Um até alcançar os elevadores, onde poderíamos descer ao Nível Dez e enfrentar monstros “aceitáveis”, como os demônios flamejantes gigantescos.
Não funcionou. Os kobolds nos alcançaram cerca de 18 metros dentro da masmorra, trancaram a porta atrás de nós e a barraram. Depois, incendiaram o corredor, enquanto ainda estávamos nele.
“NÃÃÃÃO!!!” gritou o líder do grupo. “São ELES! Corram!!!”
Encorajados dessa forma, nosso grupo disparou por um corredor lateral,  apenas para cair numa emboscada de mais kobolds disparando bestas leves através de frestas e buracos nas paredes e no teto. Kobolds com armaduras de metal e escudos lançavam coquetéis molotov contra nós por trás de grandes montes de entulho em chamas, que outros kobolds empurravam adiante com longas hastes de metal, como se fossem vassouras. Não havia dúvida. Aqueles kobolds eram maus.
Viramos a cabeça para o nosso líder em busca de orientação.
“AAAAAAGH!!!” ele gritou, levando as mãos aos rosto para não ter que confrontar a realidade da situação tática.
Nós abandonamos nossos burros e a maior parte dos ítens que carregávamos nas costas para tentar acelerar a nossa fuga em direção aos elevadores, mas fomos interceptados por kobolds franco-atiradores que conseguiam se mover e atirar, recuando para trás de pedras e cantos após atirar flechas, virotes com ponta de aço, lanças, machadinhas e mais frascos de óleo em chamas. Nós fugimos por uma área inexplorada do Nível Um, tomando dano o tempo todo. Foi aí que descobrimos que os kobolds haviam transformado o primeiro nível num verdadeiro formigueiro de túneis pequenos para conseguirem se mover mais rapidamente. Havia kobolds atuando como soldados comando em toda parte. Todos os nossos mercenários morreram. A maioria dos ajudantes também. Nós éramos os próximos.
Eu lembro que havia um mago de nível 12 conosco, e pedimos a ele para lançar alguma magia. “Detona eles!” gritamos enquanto corríamos. “Bola de fogo neles! Acaba com esses @#+$%*&!!”
“O quê?! Nesses corredores estreitos?” ele gritou de volta. “Vocês querem que a gente exploda junto deles?”
Nossa fuga desesperada nos levou a um corredor sem saída, onde um imenso tubo de ventilação descia direto rumo a uma escuridão indescritível, muito além do Nível Dez. Ali, de modo apressado e atrapalhado, nós cravamos estacas no chão e nas paredes, lançamos cordas pela beirada e descemos direto rumo àquela escuridão indescritível, porque qualquer coisa que nos esperasse lá embaixo com certeza seria melhor do que aqueles kobolds.
Nós escapamos, encontramos alguns demônios flamejantes gigantescos no Nível Dez, e até conseguimos matar um deles depois de cerca de uma hora de combate no qual perdemos metade do grupo. Nos sentimos revigorados, mas ninguém conseguia animar o líder do nosso grupo
“A gente ainda vai ter que sair pelo mesmo caminho por onde entramos”, disse ele, sorumbático, enquanto começava a dividir o tesouro.
Os kobolds do Tucker foram a pior coisa que conseguimos imaginar. Eles comeram todos nossos burros, roubaram nosso tesouro e fizeram tudo o que podiam para nos fazer sofrer. Apesar disso, eles tinham estilo, cérebro, tenacidade e coragem. Nós tínhamos respeito por eles e até amor, de certa forma, porque eles nunca eram entediantes.
Se kobolds conseguiram fazer isso com um grupo de personagens entre os níveis 6 e  12, imagine o que alguns orcs e NPCs de nível baixo podem fazer com um grupo de nível 12 ao 16, ou uma gangue de NPCs e monstros de nível médio contra grupos de até 20º nível. Então teste isso. Às vezes, são as pequenas coisas — quando bem usadas — que fazem a diferença.
https://ia803109.us.archive.org/BookReader/BookReaderImages.php?zip=/8/items/DragonMagazine260_201801/DragonMagazine127_jp2.zip&file=DragonMagazine127_jp2/DragonMagazine127_0000.jp2&id=DragonMagazine260_201801&scale=4&rotate=0

Título original: "The Copy and Paste Manifesto". Escrito originalmente por Joshua McCrowell no seu blog intitulado "Rise Up Comus" em 20 de maio de 2025. 

Traduzido por Felipe Tuller. 

 

Eu já afirmei publicamente que criar um megadungeon é fácil e divertido. Eu escrevi um livro sobre isso.

Mas eu tenho boas notícias. É ainda mais fácil do que eu fiz parecer.

Quero apresentar a você um ethos para seu jogo, chamado...

O Manifesto do Copia e Cola

Na introdução de That Hideous Strength, C.S. Lewis faz referência ao escritor de ficção científica Olaf Stapledon e a sua obra: “O Sr. Stapledon é tão rico em inventividade que pode muito bem emprestar isso, e eu admiro sua inventividade (embora não sua filosofia) tanto que não sentiria vergonha alguma em tomá-la emprestada.”

Eu gostei dessa citação desde a primeira vez que a li e já a peguei emprestada diversas vezes. De fato, sempre que eu roubo ou crio algo a partir do trabalho de outras pessoas, costumo citá-la, inteira ou em parte. Eu acho extremamente satisfatório ter roubado essa ressalva de dizer: “Ei, estou roubando isso de alguém.”

Você também pode ter ouvido a frase frequentemente atribuída erroneamente: “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam.”

Estou aqui para dizer que é exatamente assim que você deveria conduzir suas mesas.

Amando o manifesto

Não existe a masmorra perfeita. Quando você mestra The Yellow Book of Brechewold, você sente que o subnível da nave élfica pende demais para a ficção científica para seu jogo de fantasia, então você o remove. (Manifesto do Cortar, Copiar e Colar não tem uma sonoridade tão boa, mas cortar também faz parte.)

Não existe a campanha perfeita. Quando você mestra Dolmenwood, você quer começar os jogadores em Brandonsford (a vila de Black Wyrm of Brandonsford) para dar a eles imediatamente uns ganchos de conto de fadas e algumas missões dos NPCs locais. Você pega Brandonsford e a encaixa no hexágono 1205.

Não existe o megadungeon perfeito. Só existe a colcha de retalhos de masmorras costuradas à mão. Você junta duas masmorras de Silent Titans, Lost Caves of the Worm Witch de Sersa Victory e o Nexus of the Ix (da revista Knock! #3). Você conecta todas elas de uma forma temática e pelo uso de um mapa.

Não existe o jogo perfeito. Você roda OSE, mas pega as regras de abrir fechaduras de Errant, os pacotes de equipamento inicial de Cairn, e os procedimentos de XP retirados de uma postagem de um blog que você leu uma vez.

Existe tanto conteúdo bom por aí. O Manifesto do Copiar e Colar diz para você usar tudo isso. Crie o jogo perfeito para você, combinando todas as suas preferências e cortando tudo o que não gosta.

Chega de lamentar que você nunca vai conseguir usar aquele tal livro na mesa. “Quando terei tempo para mestrar mais uma aventura? Quem toparia jogar esse novo sistema comigo?” Não, cale a boca. Esse não é o motivo pelo qual você compra livros. Você os compra para roubar deles.

Vivendo o manifesto

Quando eu fiz o playtest de His Majesty the Worm, meu megadungeon era uma vasta coleção de conteúdos copiados e colados. (É por isso que nunca mostrei isso a ninguém.)

Eu quero que você faça o mesmo que eu fiz. Veja como:

Passo 1: Pegue uns mapas

Esses mapas podem ser feitos por você, gerados aleatoriamente com alguma coisa tipo o Watabou, criados por um cartógrafo profissional ou uma combinação dessas opções.

Passo 2: Numere as salas

Numere as salas com códigos de três dígitos (como recomendado por His Majesty the Worm). O Nível 1 terá as salas 101, 102, 103 etc. O Nível 2 terá 201, 202 e assim por diante.

Passo 3: Dê início à sua ficha de referência da masmorra

Use um Google Docs. Marque as diferentes masmorras como Título 1. Marque as salas como Título 2. Configure os estilos dos Títulos para que fiquem bonitos.

Passo 4: Pegue masmorras

Acesse aquela sua pasta de suplementos, aventuras e masmorras de RPG que está em constante crescimento e comece a abrir os PDFs.

Passo 5: Copie e cole

Pegue os melhores conteúdos e comece a copiá-los para seu Google Docs. Encontre temas que façam tudo funcionar em conjunto. Corte o que você acha que não combina com seu estilo. Talvez o Nível 1 venha praticamente inalterado de uma única fonte, mas reorganizado para se adaptar ao seu novo mapa e criar conexões com o Nível 2. Talvez você decida colocar um NPC do Nível 3 no Nível 1, criando uma linha de continuidade entre a entrada e uma seção mais profunda da masmorra.

Passo 6: Repita, infinitamente

Compre mais jogos. Adicione mais seções ao seu mundo. Deixe os jogadores viajarem de Dolmenwood até o Vale das Flores. Quando eles adormecerem, acordarão em Zyan.

Copie, cole, misture, modifique e crie o jogo perfeito para você e sua mesa.

Já que eu tenho a sua atenção: a campanha de Knock! #5 está quase se encerrando

Um dos lugares principais de onde você pode copiar conteúdo é a revista Knock!. Sempre que eu inicio uma nova campanha, releio todas as edições antigas. Há tantas ideias boas, tantas regras roubáveis, tantas tabelas incríveis, tantas engenhocas legais. Isso sempre estimula minha mente e me deixa empolgado.

No momento em que escrevo, faltam menos de dois dias para o fim da campanha no Kickstarter. Não perca essa chance!

Exorcise seu FOMO garantindo a sua cópia!

 



 Tradução do texto: " So You Want to Build a Dungeon?". Escrito originalmente por Gus L. em seu blog intitulado All Dead Generations em 29 de março de 2021. All All Dead Generations' Content are licensed under https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/

 Traduzido por Felipe Tuller.
 
Você quer criar uma aventura de masmorra para um jogo de RPG de estilo clássico e quer que ela seja boa. Como fazer?

O que exatamente uma "masmorra" dá a entender e o que ela é  enquanto uma ferramenta de jogo?

Uma masmorra é um tipo específico de aventura que possui uma forma própria e exige certos elementos para ser bem-sucedida. Mais do que isso, uma masmorra é uma "aventura baseada em locação"— uma aventura que envolve a exploração de um espaço fictício, sala por sala. Certamente esse não é o único tipo de aventura de RPG, mas é o principal para um estilo de jogo focado em exploração, navegação e resolução de problemas, que é ao mesmo tempo o mais antigo e também um estilo muito cativante ainda hoje. Uma masmorra deve ser um local fantástico, mas não precisa ser um labirinto subterrâneo ou um sistema de cavernas: edifícios, naufrágios, estações espaciais, castelos, jardins formais ou o cadáver de uma besta colossal podem ser excelentes masmorras.

O que é necessário para uma aventura de masmorra é criar um espaço fantástico delimitado, composto por “Salas”, interligadas numa ordem que os jogadores possam navegar livremente: retrocedendo, mudando de direção e decidindo rotas. Dentro dessas Salas, o designer coloca obstáculos e recompensas. Tradicionalmente, isso significa um conjunto de corredores e câmaras de pedra cheios de monstros, tesouros e armadilhas. Porém, nem a estética do espaço nem a natureza dos habitantes, dos objetos valiosos ou dos desafios, são elementos fixos de design, e reinterpretar o espaço da masmorra pode resultar em uma aventura inovadora e empolgante.

Provavelmente, quando você decidiu escrever uma aventura, já tinha uma história em mente, e isso é bom, mas como uma aventura baseada em locação gira em torno das decisões dos jogadores, essa história ficará em segundo plano. Dada a liberdade para planejar e explorar, os jogadores são tão inventivos e teimosos quanto o proverbial bando de gatos, e tentar forçá-los ou enganá-los para contar uma história específica é tão eficaz quanto comandar um circo de gatos. Em vez de uma história, considere suas ideias como um “Tema”, que irá informar a “Ecologia” e a “Disposição” ou o mapa que, juntos, definem a aventura de masmorra. Enfiar uma trama nela provavelmente falhará no momento em que os jogadores, alheios à trama, seguirão seus próprios interesses. Essa é a alegria e o fardo do estilo clássico de exploração de masmorras: a história precisa se devenvolver a partir das decisões dos jogadores.

A parte mais perigosa da história de um designer é o clímax ou desfecho, porque é muito difícil incluir algo do tipo sem que isso comprometa drasticamente o formato da aventura de masmorra. Beats narrativos fazem suposições sobre como os personagens dentro de uma história agirão, o que se torna muito difícil de manter quando as decisões desses personagens estão sendo feitas por alguém que não é o autor. As decisões dos jogadores dificilmente se alinharão a uma estrutura narrativa simples: incidente, ação crescente, clímax, ação decrescente e resolução. Os jogadores podem decidir evitar o confronto do clímax ao se aliarem ao antagonista, ou podem simplesmente desviar-se da ação crescente ao se distraírem, considerarem o risco muito alto ou as recompensas pouco interessantes. Em vez disso, o designer de masmorras se sai melhor ao construir apenas o espaço para que uma história se desenrole, confiando nos jogadores para determinar a narrativa dentro dessa história.

NOTA: Agora existe uma sequência mais aprofundada para esta postagem, focada principalmente em como "indexar" masmorras.
 

O ESPAÇO É O FATOR CENTRAL

A primeira questão do design de masmorras é o espaço. Antes de o designer abordar os temas e a história de uma locação fantástica, ele deve considerar as mecânicas de jogo dessa localização em si, pensando nela como um tabuleiro ou como uma arena para o jogo. Espaço é algo que demanda tempo para ser atravessado, e em um RPG clássico, o tempo incorpora riscos: encontros aleatórios, tochas se apagando, exaustão e a crescente distância da segurança da entrada. Por isso, uma masmorra requer um layout, uma forma de estruturar as Salas da masmorra que ofereça aos jogadores escolhas sobre como navegá-las, com uma dimensão e complexidade em que essas escolhas sejam significativas. Tradicionalmente, e de forma ainda mais eficaz, o layout é organizado e apresentado por meio de um mapa. Desenhar um mapa é relativamente simples, mas levanta a questão: que tipo de mapa?

Pensar sobre mapas é pensar sobre espaço e tempo, e não apenas o tempo ficcional. Considere o tempo que você e seus jogadores têm disponível para o jogo. Um grupo de exploradores em um RPG com regras relativamente leves atravessa cerca de três a cinco salas por hora de jogo, assumindo que há de 1 a 2 encontros ou outros obstáculos nessas salas e um nível razoável de detalhes para cutucar. Para uma sessão única de 2 a 4 horas, uma masmorra com 8 a 12 salas deve ser suficiente. Por mais que jogos de várias sessões possam utilizar masmorras maiores, essas limitações de tempo ainda são importantes porque ajudam a determinar os limites do que pode ser explorado em uma sessão, além de influenciar a colocação de entradas e saídas.

Essa escala básica é importante porque oferece ao designer expectativas e diretrizes quanto ao tamanho e à complexidade. Complexidade demais ou salas demais podem impedir que os jogadores façam progresso significativo na aventura ou compreendam o layout. Poucas salas ou baixa complexidade podem fazer com que a aventura ofereça poucas escolhas, reduzindo o jogo a uma série previsível de cenas e encontros. Após definir o escopo básico do layout, há muitos detalhes específicos a considerar, e a cartografia de RPG tem seu próprio conjunto complexo de argumentos, máximas e opiniões fortes. No entanto, algumas dicas básicas para criar mapas de masmorras utilizáveis incluem:

DICAS PARA MAPAS & LAYOUTS 

  • Evite mapas lineares. Ramificações, loops, verticalidade, portas secretas, salas com múltiplas entradas e saídas tornam o mapa da sua masmorra um quebra-cabeça que os jogadores podem resolver.
  • Considere o tamanho e a escala. Adicione salas vazias para criar espaço quando necessário. Em vez de uma única localização estendida, considere subníveis ou "nódulos" de 10 a 30 salas cada.
  • Coloque múltiplas entradas e saídas, especialmente se a masmorra for maior. Use portões trancados, alçapões, dutos e portas secretas para transformar a descoberta dessas saídas e suas relações com o layout da masmorra em uma recompensa.
  • A verticalidade é uma maneira tradicional de separar regiões ou "níveis", mas é mais difícil de usar em Salas individuais, já que  descrever espaços complexos pode ser algo complicado para o Mestre: salas com múltiplos níveis ou formatos estranhos devem ser usadas com moderação.
  • Simetria é algo arriscado. Embora possa ser útil para dar dicas sobre áreas secretas e ajudar os jogadores a entenderem o mapa, ela também pode facilmente gerar mapas sem graça e lineares. Antes de usar simetria, considere as razões ficcionais para tal, como isso afetará o jogo e o fato de que, na arquitetura real, a maioria das simetrias são apenas parciais.
  • Mais importante: O mapa da sua masmorra deve ter uma lógica interna. A disposição das Salas deve fazer sentido tanto ficcional quanto espacialmente. Um salão do trono, por exemplo, deve ser grande e acessível por meio de uma antecâmara opulenta e uma sala de guardas, não por uma cozinha ou depósito de lixo.

SEM HISTÓRIA — APENAS TEMA! … REALMENTE SEM HISTÓRIA?

Não exatamente. Toda localização tem uma história, um passado que informa a situação que os jogadores encontram ao explorar. No entanto, não há uma história predefinida sobre como a aventura nessa localização irá se desenrolar. Alguns eventos ou finais podem ser mais prováveis do que outros, mas o Mestre, e especialmente o designer, não podem depender dessas conclusões prováveis porque a aventura é dos jogadores, e os jogadores são imprevisíveis. Em vez disso, o designer pode definir a situação, os objetivos e as personalidades dos outros atores (NPCs ou monstros da aventura — essa distinção não é relevante aqui) e descrever o pano de fundo.

Situações e História

Criar uma situação inicial envolvente é tão importante quanto desenhar um bom mapa. Sem um conhecimento básico, sem uma energia narrativa aprumada — pronta para ser liberada pela interação dos jogadores— será difícil visualizar e incorporar essa situação. Uma boa aventura baseada em localização pode começar em equilíbrio, com uma situação mais ou menos equilibrada, mas pronta para virar um desastre ou ação com a interferência dos jogadores. Situações em desenvolvimento também são possíveis, mas muito mais complicadas, pois precisam estar integradas à campanha como um todo, normalmente com uma mecânica de contagem regressiva, relógio ou índice — algo muito além do escopo do design de uma única localização.

A história da localização e as histórias de seus habitantes definem a situação inicial, o layout espacial e influenciam o desfecho da aventura. No entanto, essas informações, por si só, não são especialmente úteis para jogadores ou para o Mestre. A maneira como o passado impacta o presente que os personagens estão explorando certamente importa, mas os detalhes intrincados da história de uma localização são em grande parte desnecessários para conduzir uma aventura. De certa maneira, a história de fundo é algo inevitável quando você está criando a locação na sua cabeça, mas isso não é algo que precisa ser transmitido diretamente ao leitor. A história de fundo muitas vezes atrapalha a usabilidade, tanto porque ocupa um espaço que poderia ser melhor usado para descrever detalhes mais acessíveis, quanto por complicar o layout e por adicionar informações que podem dificultar a adaptação da aventura ao jogo do Mestre. No entanto, o minimalismo extremo, eliminando toda a história ou o contexto, é uma decisão de design tão ruim quanto o excesso de história.

A história de fundo ajuda o designer a criar o local, definindo o que são os espaços, como são usados no presente e o porquê de terem sido criados. Ela informa a atitude, os relacionamentos e a natureza dos habitantes do local (a “Ecologia”) e pode oferecer pistas aos jogadores sobre enigmas e obstáculos no local. Mais importante ainda, ela define a descrição e a estética do local, o seu tema. O tema evolui naturalmente a partir dos esforços do designer para conceber o local, sua história e a situação atual,  preenchendo seus detalhes. No entanto, você não deve desperdiçar isso em uma introdução que os jogadores não lerão e que o mestre do jogo provavelmente irá apenas folhear e esquecer durante o jogo.

Em vez disso, a história de fundo, a história como um todo e o Tema estético oferecem algo que o designer pode incorporar na descrição e usar para diferenciar sua aventura de outras. Mapas, estatísticas de monstros e outros aspectos mecânicos do design de locação não variam muito entre aventuras semelhantes, mas o tema pode variar. Saturar um local com uma estética consistente e um tema repetido melhora a aventura ao torná-la mais fácil de visualizar, mais memorável e mais rica em detalhes.

Para o Mestre, o tema facilita a expansão das descrições necessariamente limitadas das salas, fixando uma estética geral, uma situação passada e presente na mente, que o Mestre pode usar para responder a perguntas inesperadas. Para os jogadores, um tema oferece consistência, permitindo melhor visualização do espaço e, assim, maior capacidade de investigar ou pensar em soluções inesperadas. Um Mestre que opera com um Tema bem definido terá mais facilidade em descrever detalhes e expandir descrições, dando aos jogadores mais conhecimento e ferramentas para agir dentro da ficção. Os jogadores também desenvolverão expectativas e conhecimento sobre um Tema, tornando-os mais capazes de identificar o que está fora do lugar e reconhecer pistas.

OS USOS DA HISTÓRIA

  • Rumores e ganchos quase sempre incorporam história e contexto, representando pistas sobre a localização de tesouros, a natureza de obstáculos ou os objetivos da oposição dentro de uma locação.
  • Crie evidências e histórias de fundo nas descrições do local, em vez de repassá-las ao Mestre, pois elas são úteis apenas na medida em que os jogadores podem descobri-las.
  • A história define a aparência de um local: layout, material de construção, estado de conservação, existência ou tipo de portas secretas e armadilhas — além disso, oferece pistas aos jogadores sobre essas características.
  • Murais, esculturas, grafites e detritos são definidos pela história e pelo contexto, incentivando a investigação dos jogadores enquanto criam a sensação de um espaço vivo.
  • Histórias e contextos ajudam a tornar os objetivos e as atitudes dos habitantes do local mais plausíveis e transparentes.

ECOLOGIA

Com o Layout e o Tema definidos, o que resta é focar nos habitantes da sua masmorra e nas formas como eles irão interagir com o grupo, entre si e com o próprio espaço. Essa ecologia da masmorra, conforme mencionada no Dungeon Masters Guide de 1979, é algo fantástico e precisa ser compreensível, mas não funcional de modo científico. Cadeias alimentares e territórios de criaturas são úteis, mas o objetivo não é simular um mundo fictício com fidelidade rigorosa. O objetivo é criar uma teia de conexões plausíveis e reconhecíveis entre as criaturas e o espaço da masmorra que os jogadores possam observar, entender e explorar. A parte mais óbvia e útil disso são os relacionamentos entre os habitantes do local, suas “Facções”.

FACÇÕES

Além de continuar a coerência estética proporcionada por um bom tema, a ecologia inclui os relacionamentos de predador e presa, ou tirano e subordinado entre os habitantes. Para que essas histórias e relacionamentos importem, eles devem ser algo que os jogadores possam ver e tirar proveito. Dentro das relações entre facções, há espaço, e até mesmo uma necessidade, para a história. Mas, novamente, os detalhes do passado são menos importantes do que um presente com o qual os aventureiros possam interagir. Detalhes como as razões para animosidades entre facções são úteis em alguns momentos, especialmente porque oferecem informações que os jogadores podem capitalizar quando inevitavelmente se envolvem na política e nos conflitos das facções. No entanto, o mais importante são as relações de poder e atitudes entre as facções locais, a natureza de seus líderes e o que eles exigirão para se aliar aos aventureiros.

Embora seja comum pensar em facções como outros grupos de criaturas inteligentes e organizadas dentro de um local, isso não precisa ser o caso. Uma facção pode ser uma única criatura, seja um predador poderoso ou até mesmo uma criatura mais fraca cuja própria falta de poder a torna quase um recurso natural para os aventureiros. Da mesma forma, facções não precisam ser inteligentes. Bandos de animais ou uma única criatura perigosa podem definir os relacionamentos entre os habitantes de um local, e seus objetivos e reações aos aventureiros são úteis de se considerar. As facções também não precisam ser nativas do local. Grupos de aventureiro rivais ou outros intrusos podem competir pelos mesmos objetivos dos jogadores dentro de uma locação, oferecendo inimigos, aliados ou simplesmente complicações. Para projetar a ecologia de um local, devemos ter em mente qualquer habitante ou intruso provável cuja existência e planos possam perturbar a situação atual da locação e oferecer dicas sobre como eles podem interagir com os personagens dos jogadores, mesmo que de forma simples.

FAZENDO RESKIN*1

Uma dificuldade em criar uma Ecologia de masmorra útil que ainda siga um Tema específico pode ter a ver com a natureza dos habitantes. Apesar de existirem centenas de manuais de monstros e bestiários, às vezes é difícil encontrar uma criatura pré-criada que: se ajuste ao nível apropriado dos aventureiros, pareça adequada ao espaço específico e tenha as habilidades e objetivos que se alinhem à estrutura das facções e à estética. Embora inventar novas criaturas seja uma das grandes alegrias do design de aventuras, o processo em si pode ser intimidador, especialmente em sistemas mais complexos. Por isso, muitas vezes é mais fácil usar as estatísticas de uma criatura já existente e bem conhecida, descrevendo-a de forma diferente. Um goblin pode ter as mesmas estatísticas que um aldeão enfurecido ou um ser fada travessa e infamiliar. Quando essa reskin não parece suficiente, pequenos ajustes ou trocas de habilidades especiais geralmente podem preencher as discrepâncias. Uma besta porco pode ser baseada nas estatísticas de um leão da montanha com mais pontos de vida (o salto do felino se transformando em uma carga de javali) ou nas estatísticas de um urso sem os ataques de garras e com a mecânica de abraço substituída por uma carga.

Fazer reskin não se limita a criaturas. Isso também pode ser aplicado a outros obstáculos, armadilhas, tesouros, efeitos mágicos e itens mágicos. Geralmente, qualquer elemento mecânico pode ser descrito para se ajustar melhor ao Tema e à Ecologia da sua aventura. Isso não apenas facilita a criação de estatísticas para sua aventura, mas também estimula uma maior interação dos jogadores, pois as ameaças enfrentadas pelos personagens não podem ser facilmente definidas com o conhecimento do sistema, mas dependem da observação dos jogadores para serem avaliadas.

CONSTRUINDO ECOLOGIA E FACÇÕES

  • Considere os locais que são fontes de alimento, água e descarte de resíduos das facções, não apenas porque isso cria coerência, mas também porque define territórios das facções e oferece formas de ameaçar ou destruir a facção.
  • Nem tudo precisa fazer sentido ecológico de maneira literal, como ter fontes de alimento e um covil, mas essas coisas todas devem ter um lugar dentro da "ecologia" total do local, dando a entender relacionamentos com outros habitantes.
  • Defina a liderança, os objetivos e as preocupações de cada facção, mesmo que sejam simplesmente encontrar presas. Saber os medos e o "preço" de uma criatura torna muito mais fácil determinar como os personagens podem enfurecê-la, conquistá-la, enganá-la ou distraí-la.
  • Um líder de facção ou outro NPC não precisa de muitos detalhes para ganhar vida: uma característica física memorável, alguns adjetivos e uma frase descrevendo seu "preço" e seus "medos" geralmente são suficientes.
  • Para facções maiores e mais importantes, crie uma "ordem de batalha" listando contingentes, recursos e algumas táticas que usariam em resposta a ameaças ou estratégias prováveis.
  • Não se sinta limitado pelas descrições predefinidas de monstros/feitiços/itens, porque a coerência interna da sua aventura é mais valiosa do que a fidelidade a um manual. Estatísticas preexistentes fornecem diretrizes e modelos, mas mesmo em sistemas complexos, elas podem ser reconfiguradas e usadas de maneira diferente com facilidade.
  • Encontros aleatórios e tabelas de encontros aleatórios são fundamentais no design de masmorras. Eles não apenas criam pressão de tempo, mas também introduzem suas facções e oferecem oportunidades para encontrar seus representantes fora de seus covis.

COERÊNCIA

O objetivo final da Ecologia, do Tema e do Layout é a Coerência. Para o Mestre que lê a aventura e para os jogadores que a vivenciam, ela precisa parecer conectada e fazer sentido como um todo. Criar uma aventura coerente é um teste de quão bem os aspectos de Layout, Tema e Ecologia se misturam em suas bordas e se sustentam mutuamente, pois, apesar da forma como essas dicas estão estruturada aqui neste texto, esses elementos se sobrepõem e se combinam naturalmente.

A Coerência é especialmente importante porque o espaço é fictício e fantástico, o que significa que visualizá-lo e entendê-lo exige mais imaginação do que visualizar um espaço fictício do mundo real. Design e descrição precisam trabalhar juntos para construir algum senso de ordem plausível, com elementos fantásticos que se afastam do real, mas que ainda contêm lógica interna. A Coerência é difícil de quantificar, pois ela se acumula a partir de outros elementos de design, mas o objetivo é criar uma aventura que seja identificável como "a caverna do dragão" em vez de "uma caverna com um dragão dentro".

Para o Mestre, a Coerência e consistência permitem maior facilidade em adicionar detalhes e fornecem um todo compreensível, uma narrativa do local em si que é mais fácil de lembrar do que elementos desconexos. Para os jogadores, a coerência permite maior interatividade com o cenário, porque há uma ordem interna no local que eles podem decifrar.

INDEXAÇÃO*2

Finalmente, os preparativos necessários estão completos, o mise en place da aventura está pronto — um mapa foi desenhado, facções preparadas, rumores escritos, tema e situação inicial prontos. Como designer, você está preparado para adicionar o conteúdo principal da aventura — os índices que descrevem o espaço fictício e que o Mestre usará para conduzi-la. Há muita arte envolvida na indexação, uma combinação peculiar de escrita técnica e poética. Um bom índice de masmorra deve transmitir informações descritivas de maneira clara e eficiente, além de inspirar com linguagem evocativa ou poética. Ela não apenas precisa ser clara para o leitor, mas também oferecer uma linguagem suficientemente sucinta e inspiradora para que o leitor possa transmitir a descrição aos jogadores, que por sua vez irão interrogar a descrição.

  • Cuidado com o formalismo. Embora uma estrutura repetida para cada descrição de sala possa ajudar os Mestres a conduzir uma aventura, uma estrutura que contenha muitos elementos ou elementos subutilizados pode acabar distraindo. Uma descrição de sala ainda é escrita evocativa e criativa — não uma equação matemática.
  • Não use caixas de texto de "leitura em voz alta". Elas tiram atenção do conteúdo da sala e interrompem o fluxo natural da fala do Mestre.
  • Comece sua descrição com os aspectos mais importantes do espaço: perigos para os PJs, seguidos pelos aspectos mais óbvios da sala.
  • Seja o mais conciso possível. Digressões e detalhes supérfluos podem tornar as descrições inutilizáveis. Você só consegue utilizar algumas frases para cada ideia antes que ela se torne confusa, e apenas alguns parágrafos por sala antes que os primeiros sejam esquecidos.
  • Apesar da necessidade compartilhada de concisão, a indexação de salas não é escrita técnica, como código de programação, especificações arquitetônicas ou uma fórmula matemática. Você não conseguirá incluir todos os detalhes, então os detalhes que incluir devem ser evocativos e inspirar o Mestre a preencher o que está faltando.
  • Descreva o que está na sala, não o que ela costumava ser. Vestígios visíveis do passado podem fazer parte da descrição, mas devem ser minimizados, a menos que sejam relevantes para os obstáculos atuais da locação.
  • Descreva um espaço, não os personagens explorando-o. A menos que alguma compulsão sobrenatural poderosa esteja em ação, os jogadores decidirão como seus personagens se sentem em relação ao que estão vendo, então evite atribuir emoções e muito menos ações aos personagens. Não comece com “Quando vocês entram pela porta”.
  • Descreva um espaço, não uma cena. Embora os habitantes devam estar envolvidos em atividades, isso faz parte da descrição das criaturas, não do local. Um local não deve ser estático, então o designer não pode saber em que circunstâncias em que os personagens encontrarão a sala.
  • Inclua sentidos além da visão ao fornecer descrições: condições de iluminação, temperatura, sons e odores são descrições poderosas e pistas úteis e de fácil entendimento.
  • Torne suas salas interativas. Quanto mais os jogadores interagirem com a aventura, mais estarão pensando sobre ela e visualizando-a. Mesmo elementos de “decoração de masmorra” que não sejam tesouros ou obstáculos fornecem contexto temático, tornam futuros tesouros ou ameaças ocultas mais eficazes e encorajam os jogadores a gastarem tempo explorando.
  • Cuidado com o minimalismo. Brevidade é essencial, mas a descrição da sala é a melhor oportunidade do designer para compartilhar o espaço imaginado com o Mestre, que o traduzirá para os jogadores. Oferecer detalhes poéticos, concretos e palavras específicas que deixam uma forte impressão é a melhor forma de fazer isso.
  • Use um tom e um estilo de linguagem que sejam consistentes. Grandiloquência “Alta Gygaxiana” ou familiaridade humorística podem funcionar, mas alternar entre eles com frequência também altera o tom da aventura e confunde o leitor.

Para uma análise mais aprofundada sobre a indexação de salas, esta postagem sobre as descrições na seção de masmorras de Descida ao Avernus de 2019 pode ser útil.

 

*1 Dado o uso corrente do termo "skin" no vocabulário dos jogos, optamos por manter a palavra "reskin" no original. O termo "skin" em inglês significa literalmente "pele" ou "casca". Em jogos como League of Legends, Fortnite, entre outros, as "skins" são itens cosméticos que servem para modificar a aparência dos personagens de forma a propiciar que o jogador customize seu personagem e se expresse sua através dessas modificações. O termo "Reskin", por sua vez, trata da mudança da aparência e/ou de um aspecto mais superficial e externo de um objeto sem necessariamente modificar sua essência ou, no caso dos jogos, sua mecânica.

*2 "Keying" no original. Trata-se aqui do termo utilizado na criação de masmorras, popularizado nos módulos clássicos do D&D, que descreve o processo no qual as áreas do mapa são numeradas e  descrições equivalentes a cada espaço da masmorra são descritas em outra área do documento seguindo a numeração estabelecida. Em uma tradução literal livre, "keying" poderia ser "chaveamento" mas aqui demos preferência ao termo "indexação" por dar a entender mais diretamente que se trata de um processo de organizar e listar as informações da masmorra.

 
Tradução do texto: "How to overcome your hyperdiegesis allergy". Escrito originalmente por Nova (ela/dela) em seu blog intitulado Playful Void em 01 de novembro de 2024.
 Traduzido por Felipe Tuller.

"hiperdiegese" é uma palavra usada para descrever elementos de uma obra criativa que não são explicados, mas que dão a entender um cenário maior. Exemplos bem conhecidos de hiperdiegese incluem:

  • “Navios de ataque em chamas ao longo do ombro de Orion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão perto do Portão de Tannhäuser.” 

Blade Runner

  • “Você lutou nas Guerras Clônicas?” “Sim. Eu já fui um cavaleiro Jedi, assim como seu pai.” 

Star Wars

  • “Quando você abre seu cérebro para o mundo do maelstrom psíquico, role +weird.” 

Apocalypse World

Esses exemplos, obviamente, foram soterrados por “retcon” numa infinidade de continuações. O termo "hiperdiegese" foi cunhado por Matt Hill, embora eu o tenha encontrado aqui nesse link e selecionado algumas citações, já que você consegue lê-las por conta própria, e também porque isso aqui não é uma análise crítica – é uma reflexão minha sobre essa ideia.

“…a criação de um vasto e detalhado espaço narrativo, do qual apenas uma fração é vista ou encontrada diretamente no texto…” 

Matt Hill, Fan Cultures

“…o mundo é construído ao longo da série acumulando e reiterando detalhes. Menções a pessoas, lugares e eventos sugerem um mundo completo com uma história vasta…” 

Matt Hill, Defining Cult TV

Vou falar sobre isso no contexto dos “jogos de elfo faça-você-mesmo”, especialmente módulos e cenários. A hiperdiegese em filmes pode ter a intenção de semear conexões para futuros episódios (como no início do Universo Cinematográfico Marvel ou em várias séries de Star Trek), mas também pode ser comentários isolados que buscam dar uma sensação de vastidão. No RPG, é intencionalmente um espaço que a mesa de jogo preenche.

Então: pessoalmente, eu adoro hiperdiegese nos meus módulos e cenários. Mas percebo que entre muitos árbitros há uma certa resistência a isso. Vejo pessoas reclamando repetidamente: “Não está explicado quem é tal personagem” ou “se esse nome não se refere a alguém no módulo, não deveria estar aqui”. Obviamente, eu discordo dessa preferência, mas é uma preferência e é válida. M. John Harrison foi menos generoso — ele chamou isso de “peso do excesso de nerdismo,” mas acredito que, em RPGs de mesa, esse “peso do excesso” pode ser justificado. Vamos explorar (perguntei a alguns amigos que escrevem jogos e módulos) de onde vem esse impulso e se devemos contorná-lo ou abraçá-lo.

Eu encontrei problemas com o tema dos detalhes hiperdiegéticos na excelente série de zines Through Ultan’s Door de Ben L. e descrevi-os assim:

“Eu temo a falta de clareza — ‘por que o salão de banho está ensanguentado?’ — para mim resultaria em uma espécie de paralisia de improvisação, na qual a falta de informações, em um mundo muito maior e crescente, me faria hesitar em criar minhas próprias respostas, com medo de contradizer algo que não lembro ou que ainda não foi escrito.” 

Eu, aqui

Então, eu sou menos receptiva a informações hiperdiegéticas porque se eu inventar algo errado poderia arruinar algo que já existe no mundo, que pode aparecer em uma futura edição ou quebrar a narrativa. Zedeck Siew sugeriu que isso significa colocar em risco a criação de “interrupções no tecido do mundo em vez de evoluções (porque o autor não está presente na mesa)”. Há uma solução para isso que pode ser realizada num nível editorial: sinalizando as informações hiperdiegéticas. Zedeck sugeriu referenciar páginas no documento por omissão, em vez do método atrapalhado de dizer “isso é hiperdiegético”.

As informações diegéticas podem ser enganosas. Chris McDowall sugeriu que a “nebulosidade das informações” em RPGs de mesa — o fato do árbitro desempenhar o papel de todos os sentidos dos jogadores — pode transformar informações hiperdiegéticas em ruído confuso, dificultando a distinção entre o que é informação relevante e o que não é. Por exemplo, o uso de nomes de lugares ou pessoas que não são imediatamente relevantes para o enredo pode distrair os jogadores do módulo ou aventura em questão. Talvez esta observação casual de Crown of Salt possa fazer com que os jogadores desviem de sua missão pela segunda espada. Por exemplo: “Uma cópia idêntica da Lâmina do Rei Esquecido”.

Uma terceira preocupação é que um árbitro com pouca confiança em improvisação, ou que adere rigidamente ao método Blorb de mestrar aventuras, não vai curtir o fato de uma informação não estar disponível em um almanaque, no apêndice ou seja lá onde for. Uma vez eu mestrei uma campanha de Dragonlance, um mundo que conheço bem, usando um site de wiki incrivelmente detalhado. Certamente há um prazer em participar desse tipo de jogo no qual sempre há uma resposta certa. No entanto, eu acho que temer não saber a resposta certa vai contra os pontos fortes dos “jogos de elfo faça-você-mesmo”. Esse reconhecimento da improvisação como uma força especial do hobby remonta aos primórdios:

“...informação total e absolutamente perfeita não será necessária, mas um esquema geral é necessário. A partir disso, você pode dar dicas vagas e respostas ambíguas... a interação do árbitro e dos jogadores transforma o esqueleto básico em algo muito maior [...] se aventurar dá um sopro de vida a um mundo de faz de conta...” 

Gary Gygax,Guia do Mestre AD&D 1e

Eu esperava tirar alguns princípios desses medos, para melhor escolher onde colocar informações hiperdiegéticas, obter o melhor efeito e minimizar reações alérgicas, mas percebo agora que minhas ideias iniciais sobre esses princípios estavam erradas. Acho que nesse caso nós temos que lutar contra nossos instintos. Isso se tornou uma postagem sobre como mestrar e jogar, em vez de como escrever. Surpresa!

Apoie sua improvisação. Ninguém é bom em improvisação no vazio. Você precisa abastecer sua despensa: consulte produtos que já possui. Leia coisas de outras pessoas. Blogs. Livros. Tenha uma pilha de módulos não usados. Leia-os e lembre-se deles. Monte sua coleção de geradores e documentos de apoio. Há sempre algo que já foi escrito sobre todos os assuntos. Nos dias de hoje, mais de um módulo é lançado por semana, então você geralmente não precisa criar algo novo se acompanhar o hobby de perto. Roube na cara dura. Assim, você terá algo disponível quando for forçado a improvisar: não passa de um roubo glorificado, então encha seus bolsos de ouro. E fazer isso é fácil porque…

Jogos de sandbox são sobre desvios. Se você se desviar do planejado, abrace isso. Vá encontrar a segunda espada. Faça dela o tesouro da masmorra bônus. Adicione rumores adicionais. Aventuras sob medida guiadas pelos personagens fazem parte da dinâmica e natureza colaborativa do hobby. Se você dá apoio à sua improvisação, desviar-se do caminho original torna-se algo bom e não ruim.

Teorize ingenuamente. Parte da resistência à hiperdiegese vem do mundo cada vez mais interconectado em que vivemos; Amanda P aponta que, na maioria das vezes, um aventureiro em um mundo de fantasia vive em um mundo cheio de coisas que ele não conhece nem entende.

"...eles se encontraram por acaso em uma estalagem ou taverna e decidiram partir juntos em busca de fortuna nesses ambientes perigosos e, além do conhecimento comum da área, não sabem de nada sobre o mundo..."  

Gary Gygax,Guia do Mestre AD&D 1e

Como jogadores, devemos viver nessa ingenuidade. Costumamos querer criar especialistas — “Eu saberia disso” é um refrão comum. Em de perguntar ao árbitro, apoie-se em “Não faço ideia do que isso significa; vamos descobrir juntos”. O árbitro pode e deve corrigir os equívocos no entendimento da informação; entretanto essa ingenuidade contribui para a teorização. Aventureiros devem abraçar sua ingenuidade e explorar ainda mais fundo mesmo assim, construindo suas teorias. Encoraje seus jogadores a fazerem o mesmo: o árbitro não precisa improvisar uma resposta o tempo todo, os jogadores podem teorizar sobre ela; Pergunte a eles: “Vocês não sabem. O que acham que é?”. Isso resolve o problema anterior sobre o medo de se contradizer, pois você está investigando a realidade, e não impondo-a.

Aceite o retcon. Quando interromper a realidade acidentalmente, não hesite em corrigir. Informações hiperdiegéticas devem ser usadas para criar um mundo maior, o que significa que você pode errar. Nós quase sempre jogamos em um mundo incomparável ao nosso: uma grande mudança na nossa história ou em nossa geografia pode ser facilmente ser explicada por magia poderosa ou tecnologia alienígena. Mas mesmo numa campanha sem essas possibilidades capazes de desestabilizar o mundo e a temporalidade, você pode se dar conta de que a sua realidade se resume a lavagem cerebral ou propaganda – coisas que acontecem na vida real. Se perceber que cometeu um erro, use aquilo como um evento. Uma crise sobre universos infinitos, talvez. Abrace isso como parte da natureza dinâmica e colaborativa do hobby.

[Estou me dando conta de que não tenho uma boa palavra para essa colaboração estranha e desajustada que mora no coração dos “jogos de elfos faça você mesmo”. Tema para uma futura postagem, pelo visto.]

Bem, é isso, eu acho. O hobby ganha mais quando usamos informações hiperdiegéticas. Eu acho que precisamos aprender a abraçá-las, tanto os árbitros quanto os jogadores, e nós podemos fazer isso ajustando nossas formas de colaboração.

Idle Cartulary

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