28 junho, 2024

(Não) Incentive comportamentos éticos - Texto de Zedeck Siew

Título original: "(Don’t) Incentivise Ethical Behaviour" Escrito originalmente por Zedeck Siew no seu blog intitulado "Zedeck Siew's Writing Hour" em fevereiro de 2024

Traduzido por Felipe Tuller. 

Seguindo o projeto de resgatar ideias úteis do Xwitter, aqui vai outra opinião minha, controversa e requentada:


Essa frase é do Luke Gearing e da sua excelente postagem "Against Incentive" ("Contra o incentivo"), à qual eu estava reagindo.

A intenção do meu fio era basicamente mostrar uma grande concordância com um dos pontos levantados por Luke. Postei isso em 2021 e o estendi em 2023 após Sidney Icarus colocou uma pergunta lá. Então são dois fios.
 
Aqui estão eles, devidamente paragrafados e exprimidos mais claramente, eu espero.

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(Não) incentive comportamentos éticos 

Esse é o meu maior problema em recompensar mecanicamente a jogabilidade pró - interação social: a escolha ética de um personagem se torna mercenária.

"Ser bom em troca de uma recompensa não é ser bom — é só uma jogada otimizada"*1

Tenha em mente que eu não estou dizendo que jogabilidade pró - interação social não deve gerar recompensas para os jogadores. Toda decisão deve gerar consequências para a ficção. Ter essas consequências transformadas em algo diegético serve ao ideal de representar um mundo vivo:

Os aldeões se sentem agradecidos; os goblins se lembram da sua misericórdia; panfletos aparecem, citando o seu discurso revolucionário.

O que eu quero dizer é que premiar boas ações com benefícios mecânicos abstratos (cupons de XP, pontos de meta-recursos, etc) é uma bosta.

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Agora vamos para uma diferença sutil porém absolutamente essencial, quando se trata de representar ou explorar a ética / a moral em RPGs.

Digamos que você premia XP extra por poupar goblins.

Seus jogadores estão tomando decisões baseadas em quanto eles valorizam a vida / a "pessoalidade" do goblin*2? Ou eles estão tomando uma decisão baseada no quanto eles querem XP?

Digamos que você declare: "se você ajudar os aldeões, o grupo recebe um modificador de atitude +1 nessa vila."

Seus jogadores estão ajudando a comunidade porque é a coisa certa a se fazer, ou eles estão fazendo uma jogada otimizada, para receber um efeito +1?

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XP como moeda corrente

XP é o exemplo máximo de incentivo em RPGs de mesa. Isso começou com o "XP por ouro" do D&D e nunca mais se afastou dessa lógica.

XP ainda é uma moeda corrente. Fez as coisas que o Mestre / criador do jogo queria que você fizesse? Receba o pagamento.

Os jogadores usam XP para comprar ferramentas mecânicas melhores (níveis, perícias, habilidades) — que eles podem, então, utilizar como formas de melhor obter XP para si.

Como utilizar o ouro que você roubou dos goblins para comprar uma espada, para que então você possa agora roubar orcs.

Eu realmente acredito que tais sistemas tem seu valor. Eles são modelos que iluminam os impulsos que alimentam os comportamentos amorais / antiéticos.

Ganho material é o impulsionador da tomada de terra e do colonialismo. Barões madeireiros e impérios de fato ficam mais ricos e mais privilegiados como recompensa por suas ações terríveis.
 
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Se você quer trazer uma escolha ética para o jogo, congruente com os nossos dilemas da vida real, pode ser uma boa ideia perguntar o seguinte:
 
"Ei, se você matar o goblin, você pode pegar o tesouro dele, e você vai ficar mais rico. Não há recompensas em salvar suas vidas, a não ser o agradecimento deles."

O que é uma outra forma de perguntar:

"O seu compromisso com o ideal de preservar a vida supera a garantia de incentivos materiais por tirar uma vida?"
 

A escolha ética é uma escolha difícil, precisamente porque envolve — como muitas vezes acontece na vida real — sacrificar o crescimento e o ganho pessoal. Distribuir uma recompensa em XP por fazer a coisa certa torna a decisão ética algo irrelevante.

"Eu, como jogador, estou fazendo uma escolha mecanicamente otimizada, mas meu personagem está fazendo uma escolha ética!"

Essa é uma saída fácil. É querer ter o melhor dos dois mundo. É a cortina de fumaça fictícia da empatia encobrindo uma decisão calculada visando gerar lucro. 

 

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Sidney Icarus me fez uma pergunta que eu cito aqui agora:

"... aqueles que seguem suas crenças no bom comportamento não se sentem recompensados, e então se sentem punidos. E esse sentimento não é bom.

É uma experiência desagradável jogar um jogo no qual os jogadores justos estão em farrapos, e os mercenários malditos têm coroas e cetros. 

Então, qual é a oportunidade de design? Como garantimos que fazer a coisa certa seja prazeroso sem torná-la mercenária? Ou, como na realidade, reconhecemos que ações éticas são valiosas apenas intrínseca e filosoficamente? 

Eu não tenho ideia de como conciliar isso."


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Amigos como propriedade

Jogos modernos tentam resolver o "problema" dos jogadores-justos-em-trapos de formas variadas. A virtude pode não te trazer tesouro ou XP, mas pode te dar:
  • Espaços de contatos ou aliados, que você pode preencher;
  • Medidores de relacionamento que você pode ver subindo;
  • Pontos de favor que você pode cobrar mais tarde;
  • etc.
Será que esses incentivos mecânicos são tão diferentes de XP e tesouros, no fim das contas?
 
Seus relacionamentos com seres que supostamente estão vivos,  são transformados em habilidades para o seu jogador:  perícias que você pode aprender; poderes que você pode acionar de forma confiável. Aumente seu valor de relacionamento com a tribo orc até que poder chamá-los como reforços se torne uma habilidade ativável uma-vez-por-mês.
 
Relacionamentos se tornam contratos. Consideração se torna dívida. Coloque seus amigos em um espaço de aliados para que eles se tornem uma ferramenta.
 
Se isso é o que você quer que o seu jogo se torne — tudo bem! Como dito anteriormente, jogos nos dizem coisas poderosas quando elas retratam as engrenagens do lucro e da propriedade.

Mas eu, pessoalmente, acho que criadores de jogos não deveriam criar relações patrão-empregado e disfarçá-las como instâncias de auxílio mútuo.

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Amigos como amigos

Nas campanhas OSR das quais eu participo, eu quase sempre esqueço de anotar o dinheiro. O que geralmente é bem importante nesses jogos, já que eles seguem a grande tradição de ouro-por-XP.

Em ambos os jogos, meus personagens ainda são merdinhas de nível 1, apesar de já terem se passado meses.

Eu estou me divertindo demais, ainda assim.

Meus Mestres, por estarem mestrando mundos orgânicos, reativos, tornaram o jogo recompensador para mim. NPCs / geografias se lembram das ações passadas do grupo e reagem de acordo com elas. 
  • Eu recebi guelras de um espírito do rio depois de rezar repetidas vezes;
  • Eu fiz amizade com uma vila de monstros, onde agora moramos;
  • Eu negociei com uma bruxa que domina uma floresta, que agora podemos atravessar;
  • Eu recebi uma bênção através do toque de um espírito da madeira, depois de responder ao seu chamado.
Eu não posso contar com a presença do espírito da madeira. Ele é um personagem em um mundo, e não um poder que eu controlo. Chamar o espírito da madeira pode se tornar toda uma aventura à parte.
 
Poucas dessas coisas estão codificadas nos meus atributos, habilidades ou lista de equipamentos. Em sua maioria, eles estão praticamente todos em "outras anotações". 
 
Crescimento diegético. Mudança narrativa que gera mais jogo. 

Essa é a oportunidade de design, para mim:

Como nós modificamos a cultura de jogo do RPG de mesa de tal forma que "outras anotações" se infiltrem em nossos jogos sendo tão divertidas quanto as partes sistematizadas? Que tipos de ferramentas de orientação nós devemos fornecer? O que devemos dizer em nossas seções de dicas de jogo?

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Uma observação sobre confiança

A razão pela qual é tão difícil de imaginar o jogo para além de estruturas de incentivos convencionais tem muito a ver com confiança.

Cito Sidney de novo:

Um dos principais problemas é a "mesa de baixa confiança". Eu não estou criando apenas para mim mesmo, mas para uma audiência. Para um produto. Quanto eu posso cobrar dos compradores e de seus amigos para co-criarem essa parte comigo?

Nerds amam números e coisas que nós podemos escrever em nosso inventários ou espaços porque elas são coisas garantidas. Aprendemos a temer o arbítrio do mestre e a escolha do jogador, traumatizados de vez com "Mestres Problemáticos" ou "Aqueles Caras Chatos."

A razão pela qual a pobreza na hipótese de Sidney ("jogadores justos em farrapos") soa tão mal é porque na verdade ela representa um risco na mesa de jogo. Se você não se utiliza das mecânicas elegidas pelo seu conjunto de regras (o XP e a engrenagem para fazer mais coisas de jogo), você está se arriscado a gradualmente ser excluído do jogo.

Você não tem nenhuma garantia de que seus caros jogadores vão abrir espaço para você; serem atenciosos; trabalharem juntos para representar um mundo vivo onde NPCs reagem de formas significativas — de maneiras que serão divertidas e gratificantes para todo mundo que estiver jogando.

Você está abrindo mão da garantia de relevância mecânica pela possibilidade de interações divertidas e jogo social divertido.

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A "mesa de baixa confiança" é um comportamento adquirido — o código morto da cultura gamer e do trauma. 

Quando eu jogo com gente recém chegada aos RPGs de mesa, elas tendem a serem boas jogadoras e atenciosas. Eu acho que há evidências anedóticas o suficiente vinda de pessoas jogando com crianças de escola / novatos / etc para sugerir que a minha experiência não é única.

Se a "mesa de baixa confiança" é de fato um comportamento adquirido isso pode ser desaprendido.

Que convenções de regras, agora já parte do mainstream do hobby, foram o resultado de designers desenhando defensivamente —fazendo shadowboxing contra jogadores terríveis e o espectro da "injustiça"?

Como podemos "des-desenhar" tais convenções?

A falta de confiança é um problema que nós temos que abordar na cultura de jogo e não nos conjuntos de regras. Você não pode cozinhar um prato tão bom que force as pessoas a terem bons modos à mesa.

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Isso aqui já está ficando muito longo. Eu vou terminar com uma observação: 

Jogos de elfos não são praxis*3, mas será que esse dilema específico no microcosmo dos nossos jogos de elfos bobos não se espelha, enfim, na ética do mundo real?

Ser moral é acreditar em um mundo melhor; ser amoral / imoral é se proteger contra a garantia de um mundo pior.


*1 "It's just optimal play" no original. A expressão "optimal play" é utilizada aqui no sentido de "a melhor jogada" ou "a jogada certa".

*2 "personhood of the goblin" no original. Em diálogo com teorias decoloniais e pós-humanistas, o autor evita o termo "humanidade".

*3 "praxis" é um conceito importante para a teoria marxista: tem a ver com a aplicação prática de uma teoria, ou seja: uma ação consciente, a fim de modificar o mundo através de um conjunto de ações que se pretendem efetivas e duradouras.

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