Título original: "WHY MEGADUNGEONS? A Campaign Structure for Modern Lives". Escrito originalmente por Warren D no seu blog intitulado "I Cast Light!" em setembro de 2025.
Imagem original do documento de proposta do Diablo, que agora parece um documento OSR de outros tempos. |
Por que Megadungeons?
No Discord do Prismatic Wasteland, um membro perguntou basicamente o seguinte: “Por que megadungeons?” Essa é uma boa pergunta perene, que merece respostas perenemente publicadas em blogs. Po, o Ben L., do Through Ultan’s Door, tem um podcast só sobre o quem, o quê, o quando, o porquê e o como dos megadungeons — se chama Into the Megadungeon. Vale muito a pena ouvir, é demais! Essa questão merece atenção constante porque os megadungeons são uma estrutura de campanha fundamental para Dungeons & Dragons e, portanto, também para a estrutura de campanha da maioria dos jogos de fantasia e aventura que descendem desse jogo.
A campanha Blackmoor, de Dave Arneson, a gênese do D&D como o conhecemos hoje, rapidamente passou a girar em torno dos personagens individuais do grupo que desciam repetidas vezes à masmorra abaixo do Castelo Blackmoor. Embora isso não tivesse sido planejado desde o início, os relatos sugerem que a exploração da masmorra foi tão envolvente que os jogadores se recusaram a abandoná-la. Apenas após perderem o próprio Castelo Blackmoor, os jogadores desviaram sua atenção de lá.
Algum tempo depois, quando Gary Gygax foi apresentado a essa estrutura de campanha inédita criada por Arneson, ele também começou a formular sua própria masmorra infinita situada num castelo, e assim nasceu a famosa campanha de Greyhawk. Seu impacto sobre o D&D não pode ser negado. Mas Greyhawk não foi a segunda masmorra: um dos jogadores de Arneson criou o Castelo Tonisborg em 1973, usando um rascunho inicial do que em breve seria lançado como o D&D, apresentando níveis com múltiplas salas repletas de tesouros, armadilhas e diversos dragões.
Essa estrutura de campanha de masmorras vastas também predominava fora dos grupos dos fundadores do D&D. Se você ler edições antigas do Alarums & Excursions, de Lee Gold, você verá que as primeiras estruturas de campanhas frequentemente eram estreladas por masmorras profundas. E um dos primeiros módulos publicados por terceiros para D&D, pela Judge’s Guild, foi justamente o clássico Caverns of Thracia (1979). Uma masmorra excelente cujo design exemplar é comentado em detalhe nessa postagem do Gus L. no blog All Dead Generations.
Os megadungeons SÃO SINÔNIMOS de D&D.
Megadungeons nos videogames e na mídia popular
Isso dito, os megadungeons não estão presos ao passado nem ao nicho dos RPGs de mesa. Eles também sempre tiveram presença marcante nos videogames antigos e também nos atuais! Os primeiros jogos de PC estilo “dungeon crawler” como Wizardry, que eu comentei sobre nessa postagem, traziam masmorras com múltiplos andares que precisavam ser explorados pelo grupo de personagens e mapeados à mão pelo próprio jogador. Claro, outro exemplo famoso é a série Diablo, que também gira em torno da estrutura de um megadungeon (vide a imagem no topo do texto original).
Wizardry (esquerda); Super Metroid (direita) |
O conceito de megadungeon como estrutura de design de jogo ganhou ainda mais atenção com o lançamento de Super Metroid (SNES, 1994) e Castlevania: Symphony of the Night (PS, 1997), que eventualmente deram origem ao termo “metroidvania” que passou a definir todo um gênero. O aguardado Silksong, sequência de Hollow Knight, trouxe novamente os megadungeons para o centro da atenção dos jogadores. Indico que vocês dêem uma olhada no texto de Josh no Rise Up Comus para que possam ler uma ótima e detalhada discussão sobre como os metroidvanias expressam suas estruturas. Mas eu acho que basta olhar os dois mapas abaixo para perceber claramente que Hollow Knight tem uma grande dívida com as masmorras de Dungeons & Dragons.
Exemplo de masmorra do Basic D&D de Holmes (à esquerda) Mapa de Hollow Knight (à direita) |
Enfim, megadungeons não são só um cenário para videogames. Há alguns exemplos de outras mídias bastante populares que também fazem sua história se passar no contexto de um megadungeon. O primeiro que vem à mente é o mangá Dungeon Meshi, que é gritantemente semelhante ao estilo do D&D old-school (o que se torna menos surpreendente quando você se dá conta de que uma de suas grandes influências foi Wizardry). Na categoria “sucesso de vendas das grandes livrarias” a série de livros Dungeon Crawler Carl (curiosamente abreviada como DCC) também vem crescendo como uma série de livros famosa, e parece até que a empresa do Seth McFarlane vai fazer uma série de TV baseada nela. A trama gira em torno de um cara comum preso em um reality show intergaláctico depois que a Terra inteira se transformou num megadungeon de múltiplos andares. A série de livros parece que se inspira mais em World of Warcraft do que qualquer outra coisa, mas ainda assim possui uma masmorra vasta e a exploração de masmorras é o foco da história. O novo mangá Tower Dungeon também retrata um grupo de heróis tentando alcançar o topo de uma torre de 100 níveis para resgatar uma princesa de um necromante.
Megadungeons SÃO SINÔNIMOS de D&D, mas não são APENAS D&D.
Mal-entendidos sobre megadungeons
Espero que o texto até aqui já tenha convencido você de que megadungeons não são uma estrutura arcaica, mas algo vivo no imaginário coletivo e, portanto, podendo ser uma ótima maneira de começar sua próxima (ou até mesmo a sua primeira) campanha de Dungeons & Dragons. Para reforçar isso, vejamos alguns mal-entendidos comuns:
“Masmorras são só matar & pilhar sem graça”
Isso pode acontecer em qualquer jogo de RPG. Por mais que as masmorras sejam uma unidade básica de jogo em jogos de aventuras fantásticas, elas não são uma unidade simplista. Masmorras são um ambiente criativo para RPG porque permitem que o Mestre e os jogadores desenvolvam a dinâmica de “chamada e resposta”, que é o tipo de participação necessária para que a maioria dos RPGs funcione.
Além do mais, boas masmorras são carregadas de escolhas, porém mais restritas que seus equivalentes no ermo ou em mundos abertos. Isso frequentemente exige improvisação, mas limita as novidades a um conjunto de temas e assuntos recorrentes. Essa restrição impede que um Mestre iniciante tenha que narrar três situações diferentes acontecendo ao mesmo tempo, como provavelmente ocorreria ao começar uma campanha em uma cidade ou no ermo e simplesmente perguntar: “então, o que vocês fazem?”.
"Não tenho tempo para mapear mais de 300 salas"
Se você vai criar uma masmorra, o quão grande ela precisa ser para ser uma “mega” masmorra? Eu tendo a achar que existem duas qualidades de uma megadungeon: (1) um tamanho mínimo e (2) um componente funcional. Primeiro, em termos de tamanho, Buraco no Carvalho, uma masmorra inicial bastante popular, tem cerca de 60 salas mapeadas. Caverns of Thracia, considerada uma megadungeon altamente aclamada, tem apenas cerca de 117 salas. Já Stonehell (2011), outra megadungeon muito recomendada, possui mais de 700 salas.
Em segundo lugar, “salas mapeadas” talvez não seja a melhor medida, porque uma sala enorme pode exigir tanto tempo de jogo quanto cinco salas menores. Então, outra definição que acredito ser mais aplicável ao mundo atual em que várias formas entretenimento competem pela nossa atenção, é que uma megadungeon é uma masmorra que se torna o lócus de jogo de uma campanha em andamento. Isso significa que a masmorra é o centro da ação, enquanto outros locais, por exemplo, “a vila”, desempenham uma função periférica ou de apoio, principalmente servindo como lugar para realizar ações de descanso entre as expedições pela masmorra.
Além disso, você não precisa mapear tudo de uma vez. Gygax recomendava ter cerca de 3 andares prontos antes de reunir seu grupo para a primeira sessão. No entanto, sessões de 8 horas não são mais tão comuns hoje em dia, então ter apenas 1 andar completo, com 30 a 50 salas mapeadas, já seria suficiente para começar.
"O design de masmorras é difícil porque é difícil criar boas masmorras"
Pode-se dizer que criar masmorras já é algo difícil, e isso se agrava quando se trata de criar mais de 100 salas interessantes o bastante para sustentar uma campanha. Felizmente, o criador de His Magistry the Worm, Josh McCrowell, e eu escrevemos um documento de design de masmorras. Esse curso guia o leitor pelos passos necessários para criar uma masmorra de 30 salas que seja sólida e pronta para jogar. É fácil repetir esse processo 3 ou 4 vezes e obter uma megadungeon de 90 a 120 salas, com múltiplos andares. Um ponto-chave é que o objetivo é criar masmorras jogáveis, e não masmorras tão incríveis que redefinam o gênero. Dê um desconto a si mesmo e mire na criatividade de “tédio de sala de aula”! Nessa postagem, Nick discute como fazer uma megadungeon em duas semanas. Miranda, do blog In Places Deep, também tem bons conselhos.

“Todo D&D é um trabalho improvisado, e uma ideia meia boca que coloca o seu jogo na mesa é melhor do que uma ideia perfeita que leva meses.”
~ In Places Deep

~ In Places Deep
"100 salas do mesmo tema vão ficar repetitivas"
Eu definitivamente posso responder “não” a essa afirmativa. Ao longo de meus muitos, muitos anos jogando apenas Dungeons & Dragons, eu ainda fico empolgado em explorar criptas amaldiçoadas cheias de mortos-vivos. Megadungeons são excelentes em destilar ideias E TAMBÉM dar profundidade a elas. Cada andar pode ser povoado com apenas algumas ideias, temas ou estéticas. O que significa que você não precisa ter uma lista inteira de tramas complicadas, planos, relacionamentos e NPCs antes de começar a rodar uma campanha. Megadungeons são uma tela para reiterar esses mesmos elementos repetidamente, o que permite extrair completamente o sabor de cada elemento, já que é preciso criar variações sobre cada um deles. O outro lado da moeda das masmorras são os “hexcrawls no ermo”, que podem ser muito divertidos e foram especialmente populares no formato West Marches. No entanto, acredito que hexcrawls podem diluir as ideias, já que o Mestre precisa espalhá-las por uma área muito maior, como um reino ou região, porque sua unidade básica é o hexágono de 6 milhas e não uma sala simples. Mesmo com vários elementos por hexágono, isso pode dar a sensação de muito espaço vazio. Os jogadores também percorrem mais terreno e refazem menos o mesmo caminho. Isso aumenta ainda mais a necessidade de novidades e diminui o impacto da ideia a ser ressaltada.
"Passar pelas mesmas salas vai ficar entediante"
Para responder novamente ao medo da repetição, megadungeons empregam a repetição em dois níveis simultaneamente: no nível do jogo e num meta-nível. No primeiro, a familiaridade nascida da repetição permite que os jogadores naveguem rapidamente pela megadungeon, explorem seus segredos em benefício próprio e maximizem o impacto do relacionamento com as facções. No segundo, a repetição aumenta o conhecimento dos jogadores sobre o mundo ficcional. Ela ajuda a fixar os nomes dos NPCs, locais e os deixa a par dos temas recorrentes. A repetição também ajuda o Mestre a garantir que as novidades tenham impacto. Se um grupo explorou e passou dez vezes pela Fonte de Zeus, então eles vão ficar bastante surpresos e intrigados quando, de repente, a fonte estiver rachada, a água drenada e de repente surgir ali uma escadaria levando para as profundezas escuras.
"Bem, é uma ideia boba pensar que uma pessoa ou um grupo construiu um prédio gigantesco apenas para guardar tesouros"
Outra reclamação comum que ouço é que uma megadungeon é excessivamente artificial, mesmo para um jogo de fantasia com lagartos gigantes que cospem fogo. Que “um mago fez isso” é uma explicação insuficiente, ou que “pelo poder do submundo mítico” é vago demais. Só peço que se pare por um momento para pensar sobre os modos de vida dos mega-ricos e dos poderosos, tanto no passado quanto no presente. Por exemplo, o Palácio de Versalhes tem 137 salas catalogadas, mais do que o número de salas mapeadas em Caverns of Thracia. O fundador do Facebook supostamente está comprando onze casas, totalizando algo como 100 milhões de dólares em seu quarteirão, para criar um complexo na Califórnia. E, se isso não for convincente o suficiente, deixe-me dizer uma última coisa: em termos de jogos de aventura de fantasia, assim como nos seus equivalentes dos videogames, é muito mais importante ter um espaço jogável que esteticamente se assemelhe a um espaço realista do que um espaço realmente racionalizado e funcional. Afinal, a maioria dos túmulos reais são lineares e contêm pouquíssimas salas.
megadungeons são lugares onde o familiar permite a expressão do fantástico.
Megadungeons como Campanha
Por fim, quero encerrar esse texto falando sobre a megadungeon como uma estrutura de campanha.
Acho que o ambiente de jogo moderno está muito distante do modelo do Gygax, de encontros semanais de 8 horas de duração. Em vez disso, a maioria das pessoas envolvidas no D&D depois que saíram da faculdade só conseguem dedicar cerca de 2 a 4 horas por sessão, uma vez por semana. Eu sei que sou muito sortudo por conseguir jogar cerca de duas vezes por semana, mas mais do que isso já seria forçar demais. O que vou dizer agora pode parecer contraditório, mas essa restrição de tempo é excelente para uma campanha de megadungeon.
As megadungeons têm uma estrutura/loop de campanha simplificado: Vila → Megadungeon → Vila. A masmorra, claro, é onde está a ação, e a vila é onde acontece o reabastecimento. Mas a vila geralmente contém uma facção cívica, uma facção religiosa e 2 a 3 outros grupos que representam o mundo em geral. Além disso, a proximidade de uma masmorra lendária fornece um bom motivo para todo tipo de esquisitões aparecerem por lá. E, claro, coisas da masmorra também podem rastejar para fora dela. E normalmente também há razões suficientes para incluir algumas áreas fora da vila, de modo a fornecer uma pequena zona regional: a outra vila que odeia a “vila da masmorra”, a cabana do ermitão, os estranhos monólitos, o lago e o templo/torre em ruínas. Todos esses lugares podem ser seus próprios locais de aventura, outras entradas para a masmorra, ou ambos. Ou simplesmente locais com funções extras como lugar para extrair componentes mágicos ou treinamento especial. Quando combinados com a repetição, isso significa que em apenas algumas sessões de 2 horas os jogadores vão se familiarizando com boa parte do mundo local. Isso reduz a necessidade do Mestre repetir nomes, locais, relacionamentos e lore porque simplesmente não há tanto assim a catalogar (e os jogadores estão em contato com essas coisas o tempo todo). Uma enorme vantagem!
Além disso, não demora muito para que os jogadores percebam o impacto de suas ações, para o bem ou para o mal. Em um grande hexcrawl, se eles queimarem a estalagem, os jogadores podem simplesmente seguir em frente. Numa campanha de megadungeon muito localizada, eles terão que dormir ao relento (ou dentro da própria masmorra). Numa campanha estilo hexcrawl, se o mímico maligno segue com o grupo, talvez não se veja o efeito disso por um bom tempo. Mas, em uma campanha de megadungeon, esse mímico pode muito bem se transformar na tal estalagem preferida, substituindo (misteriosamente, da noite para o dia) a antiga estalagem que eles queimaram.
megadungeons são onde o familiar permite o foco no jogo e nas ações dos jogadores.
O Fim, mas também o Começo
…da sua campanha de megadungeon!
Espero ter conseguido convencer vocês de que uma megadungeon é um espaço de campanha contido, que concentra ideias fantásticas e as estende ao máximo efeito, usa a repetição a favor dos jogadores, aumenta o engajamento no jogo, amplifica o impacto da novidade e da mudança no local da aventura e, ao mesmo tempo, é um formato que se encaixa muito bem na vida corrida dos adultos. E, longe de ser um modelo de campanha dos “velhos tempos” de Dungeons & Dragons, trata-se de uma estrutura de campanha que está sendo trazida de volta à consciência dos jogos através de mangás como Dungeon Meshi ou Tower Dungeon, e através de videogames do gênero metroidvania como Hollow Knight, Silksong e Blasphemous 1 & 2.