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 Título original: "Dungeon Checklist" Escrito originalmente por Arnold Kemp no seu blog intitulado "Goblin Punch" em 18 de janeiro de 2016. 

Traduzido por Felipe Tuller. 
Links originais foram mantidos. Alguns termos importantes foram destacados em negrito.
 
Às vezes eu crio masmorras. Hoje eu escrevi uma lista de coisas para colocar numa masmorra. Os primeiros itens são bastante óbvios, mas ainda é bom enumerar seu uso.

Como usar essa lista

Leia isso uma vez antes de criar sua masmorra. E então leia de novo quando terminar, para ter certeza que você pegou tudo.

1. Algo para roubar

Em primeiro lugar, tesouro dá aos jogadores uma razão para adentrar a masmorra. Pensando em metagame, tesouro é dinheiro, dinheiro é XP, e XP está ligado à ideia de progressão de personagem. É o principal impulsionador do sistema.

Dois ponto: primeiro, lembre-se de que tesouro não precisa ser tesouro. Ele pode ser:
  • Trecos brilhantes, como velhas moedas sem graça ou o sutiã de latão com joias da rainha zumbi.
  • Conhecimento, como onde encontrar mais tesouro, ou informação que você pode utilizar para chantagear o rei. Ou até mesmo um sábio que pode responder a uma única pergunta com honestidade.
  • Amizade, como um verme púrpura amoroso que segue você por aí e te protege quando ele está com fome ou um pouco entediado. Ocasionalmente, ele deixa sacos de ovos espalhados para que você os fertilize (e fica nervoso se você não sentar em cima deles por pelo menos uma hora).
  • Mecadorias, como uma carroça cheia de chá (valendo 10.000po). Quando eu distribuo grandes pacotes de mercadorias como tesouro, eu dou metade do XP agora, e a outra metade do XP quando eles são vendidos (eu simplesmente adoro a ideia de uma campanha mercantil).
  • Territorial, como uma torre que os jogadores podem reivindicar como sua, ou um apartamento numa área nobre da cidade (e as chances de serem apunhalados enquanto dormem diminuem drasticamente).
  • Trecos úteis para aventuras, como uma espada mágica, pergaminho de borrar o sol ou um paraquedas.

Segundo, tesouros também contam histórias. Cubra seu tesouro em símbolos religiosos, consagre-o com sangue de troll. Não deixe que suas moedas sejam moedas!

2. Algo para matar

Isso é bem óbvio. É claro que há coisas ameaçadoras na masmorra. Tem que haver algum desafio caso contrário não é uma masmorra. O jeito mais simples de fazer isso é usando coisas que estão tentando te matar (sim, existem masmorras sem monstros baseadas em armadilhas. Elas são legais, mas é por isso que essa lista está escrita com lápis e não em pedra). Há muitas maneiras de tornar os combates com os monstros, mesmo os mais básicos, algo mais interessante.

Lembre-se também que as masmorras contam suas histórias através de substantivos. A história da masmorra normalmente é contada através da escolha dos monstros (por que usar orcs quando você pode usar versões degeneradas e canibais dos anões que originalmente habitavam o local?) e da descrição destas criaturas (um zumbi-coberto-de-craca, um golem de ferro carbonizado por fogo de dragão, os retalhos de armadura élfica que os goblins estão vestindo, o rifle-cajado élfico que, por algum motivo, um dos goblins possui).

Exemplos: 2d6 orcs, 3d6 homens-de-lama.

3. Algo para matar você

Masmorras são criadas para serem vencidas. É por isso que nós não as enchemos com obstáculos inescapáveis (pedras caem, todo mundo morre) ou barreiras impenetráveis (sinto muito, a masmorra inteira está envolvida numa cúpula de adamantina, vocês não conseguem entrar). 

PORÉM, masmorras precisam passar a sensação de que foram criadas para serem invencíveis. É importante sentir que isso não é só uma pista de boliche onde o Mestre coloca os pinos para os jogadores derrubarem. Você precisa ter elementos mortais na sua masmorra mortal para que ela passe a sensação de ser mortal.

Siga apenas estas duas regras importantes. Tente seguir pelo menos uma delas.
  • Rotule seus trecos mortais como tal. Um dragão dormindo. Uma porta barricada pelo lado dos jogadores com uma placa avisando sobre aranhas mortais. Essas coisas já se parecem mortais de longe.
  • Uma chance de escapar. Talvez o dragão não caiba nos túneis menores ao redor de seu covil. Talvez a mantícora esteja acorrentada a uma pedra.

Ambos os pontos servem à mesma função: eles permitem que os jogadores escolham suas próprias batalhas, algo que você não consegue fazer em um jogo linear "nos trilho". Acho que é por isso que muitas pessoas da OSR odeiam lutas contra chefões: porque elas são a única batalha na masmorra que é obrigatória.

Monstros horríveis que podem ser evitados dão agência aos jogadores e permitem que eles sejam arquitetos de seu próprio fim.

Observação: eu acho que todos os combates deveriam ser escapáveis. Às vezes com algum custo (deixando para trás comida, ouro, talvez um PJ ou um auxiliar morto). Na minha experiência, PJs se matam com frequência suficiente mesmo que os inimigos nem saiam das salas nas quais estão.

Além disso, colocar monstros "invencíveis" na sua masmorra também permite que sua masmorra seja auto regulável. O grupo de nível 1 irá apenas passar de fininho pelo dragão, enquanto o grupo de nível 6 talvez considere lutar com ele para poder roubar o tesouro no qual ele está dormindo em cima. E, simples assim, uma masmorra se torna apropriada para grupos de nível 1 E TAMBÉM para grupos de nível 6 (e essa é outra razão pela qual eu acho que jogos OSR têm uma ampla gama de "níveis adequados" - é tão fácil quanto esperado que os jogadores fujam das batalhas que eles não podem vencer).

4. Caminhos alternativos

Caminhos alternativos permitem que grupos diferentes experienciem a masmorra de formas distintas. É um randomizador, similar ao que você conseguiria se pedisse salas de masmorra a um gerador de números aleatórios. E ele impede que você (o Mestre) fique entediado.

Agência do jogador. Os jogadores podem escolher o caminho para o qual estão mais preparados. Um grupo com 2 clérigos pode escolher o túnel infestado por zumbis, e o grupo com apoio aéreo pode aterrissar no pátio. Isso também ajuda a masmorra a ser um pouco auto-ajustável. Jogadores mais confiantes podem enfrentar a porta dianteira, enquanto grupos de níveis mais baixos se esgueiram ao redor pelo lado de fora.
 
Isso permite que os grupos evitem salas que eles não gostam. Parte da filosofia da OSR (do modo como eu enxergo) é a capacidade de evitar combates. Se um grupo não quer lutar contra uma sala cheia de esqueletos arqueiros enterrados nas paredes (especialmente depois que eles foram cegados na última sala) eles podem recuar e encontrar outra entrada. É uma opção que eles tem. 

A última razão para ter múltiplos caminhos é permitir a mestrificação de masmorras*1. Eu não quero dizer "mestragem" de jogo. Quero dizer que, à medida que os jogadores aprendem mais sobre a masmorra, eles se tornam melhores em se aproveitar de sua geografia. Eles podem atrair o verme de carniça para a armadilha de alçapão que eles sabem que está lá. Eles podem recuar para um caminho em loop ao invés de recuar para salas inexploradas (uma tática sempre perigosa).

Ao mesmo tempo, não inclua caminhos aleatórios só porque sim. Quanto mais caminhos você adiciona, menos linearidade haverá na sua masmorra. E às vezes você quer linearidade, principalmente quando isso envolve ensinar coisas aos jogadores, ou dar pistas. Às vezes você quer mostrar aos jogadores o corredor estranhamente limpo antes deles esbarrarem com o cubo gelatinoso. Talvez você queira que eles encontrem os zumbis com mãos de gancho antes de encontrarem a sala das mãos rastejantes ambulantes.

Não há nada de errado com um pouco de linearidade se você estiver acrescentando isso por alguma razão. Eu ainda acho que uma masmorra fortemente ramificada deva ser a suposição padrão, mas seções lineares de uma masmorra são um pecado venial, e não um pecado mortal.

5. Alguém para conversar

As pessoas esquecem esse ponto, porém este é o que eu mais me importo. Me importo tanto para usar caps lock: TODA MASMORRA PRECISA TER ALGUÉM PARA CONVERSAR. É um jogo de interpretação de papéis. NPCs são a maneira mais simples e mais fácil de dar profundidade à sua masmorra. É fácil porque todo mundo sabe como interpretar um goblin prisioneiro genérico e tem uma boa ideia de quais informações/serviços aquele goblin prisioneiro pode oferecer. E isso traz profundidade porque há diversas formas de como o grupo pode usar o goblin prisioneiro. Não há praticamente nenhuma encheção de linguiça - você não precisa inventar novas mecânicas e praticamente não gasta espaço ao escrever "há um goblin numa jaula. Seu nome é Zerglum e ele foi preso por seus colegas por ter libertado os ratos".

O problema é que muitas masmorras são cofres de tesouros, tumbas e minas abandonadas. A única criatura que normalmente se encontra nesses locais são mortos-vivos, golems, limos e vermes com cadeias alimentares ambíguas. Nenhum desses é conhecido por serem tagarelas. Então, aqui estão algumas opções:
  • Grupo de aventureiros rivais.
  • Goblins nunca precisam de uma justificativa.
  • Efeito mágico, como um feitiço de Boca mágica tagarela ou algo assim.
  • Ninfa do cemitério.
  • Fantasmas. Crie um do tipo simpático. Todo mundo espera que eles sejam babacas.
  • Uma cabeça de ghoul, apoiada numa prateleira. Ela consegue falar se você soprar pelo buraco do pescoço.
  • Um velhinho preso em uma pintura. Se comunica através de pinturas.
  • Um demônio preso em um espelho. Se comunica repetindo as frases de quem fala com ele.
  • Uma máquina de guerra antiga aprisionada por uma mina em estase. Procura inimigos que morreram há milhares de anos atrás, irá se autodestruir quando descobrir que perdeu a guerra.
  • Considere dar feitiços como Falar com os mortos ou Falar com fechaduras aos seus jogadores. Masmorras normalmente possuem essas coisas.
  • Súcubo demoníaca que passou os últimos 1.000 anos em uma cama, aprisionada por fios de prata tecidos em círculos no lençol.
  • Bárbaros montando pterodáctilos que estão saqueando o local.
  • Um mago deslocado temporalmente, preso em um paradoxo enquanto explorava o local. Reseta a cada 3 minutos.

6. Algo para experimentar

Além de algo que provavelmente vai descer o cacete no grupo, eu acho que esse ponto é o mais OSR da lista.

São coisas inexplicáveis, o estranho e o desconhecido. E não quero dizer desconhecido no sentido de que uma poção não identificada é desconhecida. Quero dizer algo que introduza uma nova camada no jogo.
  • Uma sala com duas portas de tamanhos diferentes. Tudo que é colocado na porta pequena emerge da porta grande com o dobro do tamanho e vice-versa. Tudo que atravessa a mesma porta duas vezes na mesma direção (aumentado duas vezes, diminuído duas vezes) recebe consequências terríveis. 
  • Um pedestal. Qualquer coisa colocada sobre ele se torna algo oposto (então, o oposto de uma espada é um machado, mas qual é o oposto de uma banana?)
  • Um esqueleto de metal. Se um crânio é colocado em cima dele, Falar com os mortos é conjurado sobre ele.
  • Poços dos desejos que são portais para outras pequenas lagoas da masmorra. Aonde o portal leva é determinado por qual item você joga no poço antes de entrar nele. Moedas de cobre, moedas de prata, moedas de ouro, gemas e flechas levam a lugares distintos.
  • Uma máquina que transforma produtos processados em matéria bruta, e matéria bruta em munições.
  • Um relógio solar que controla o sol.
  • Um golem-barco que foge de barulhos altos. Você pode direcionar seu movimento ficando na parte de trás e gritando.
  • Dois buracos numa parede. Se dois membros são colocados nos buracos, eles são trocados. Se apenas um membro é colocado no buraco, ele é amputado. Pode ser utilizado para acoplar novos membros em pessoas amputadas.

Há uma coincidência aqui com itens mágicos. Também há coincidência com coisas não-mágicas. Também há uma coincidência com combates, porque alguns combates podem ser como quebra-cabeças, ou podem depender de novas regras/condições de vitória.

Combate, para jogadores experientes, em sua maioria, é um problema já resolvido. Trecos estranhos são importantes porque dão aos jogadores um problema não resolvido.

Jogadores sabem como tirar melhor proveito de seus ataques e habilidades. Claro, você pode sacudir um pouco as coisas e forçá-los a pensar em táticas diferentes. Mas, na maior parte dos casos, eles já sabem como utilizar seus personagens da melhor forma. Afinal de contas, eles já vem praticando isso por vários níveis de personagem.

(é importante deixar que seus jogadores pratiquem as coisas nas quais eles são bons, ou seja, combater com seus personagens, mas também é importante jogar umas chaves inglesas nas engrenagens).

Trecos estranhos seguem suas próprias regras. De uma hora para outra, os jogadores não sabem como resolver um tal problema e eles têm que descobrir de novo.

Pontos extras se for algo que tem o potencial de desbalancear o seu jogo. Nada dá a um jogador mais agência do que a habilidade de tirar completamente o seu cenário dos trilhos (não que você precise ir tão longe).

Mais pontos extras se for algo que à primeira vista provavelmente irá machucar os jogadores, mas que pode ser usado para seu benefício uma vez que eles entendam como aquilo funciona.

Uma última mordomia: isso dá aos personagens de nível 1 a chance de serem jogadores de nível 10. Qualquer pessoa pode colocar um braço num buraco na parede, e qualquer pessoa pode deduzir o que aquilo faz. Trecos estranhos normalmente apresentam ameaças e recompensas que independem do nível do grupo *2.

7. Algo que os jogadores provavelmente não irão encontrar

Este ponto talvez seja controverso. Por que colocar coisas na sua masmorra que seus jogadores não irão encontrar?

Primeiro, você não precisa colocar muitas coisas na masmorra. Apenas algumas palavras aqui e ali para recompensar os jogadores que são mais minusciosos. "Dentro do estômago do vorme púrpura há uma bolsa do infinito cheia com 1.000 galões de ácido estomacal de vorme púrpura". Ou "o capitão pirata tem uma barra de ouro escondida em sua perna postiça, envolvida em feltro para que não fique retinindo". Não é como se você estivesse criando várias salas legais que ninguém vai apreciar (que dizer... às vezes eu faço isso).

Eu acho que é importante esconder coisas porque há um prazer sincero em explorar e testar os limites. Se todas as coisas na masmorra são óbvias, por que se importar com o que está no fundo do poço? Há algo interessante enterrado debaixo de toda essa lama? Jogadores que não tem tempo ou recursos para explorar 100% a masmorra (e eles não deveriam ter) sempre sairão com uma sensação de enormidade, de que sempre haveria mais a ser encontrado.

Claro, completude é uma sensação boa, mas maravilhamento também é.

Eu gosto de recompensar pessoas que são boas no jogo. E ser bom em encontrar coisas (pensando em onde elas podem estar, explorando estes locais apesar dos riscos envolvidos) é uma das formas que o jogador pode ser bom em D&D. Eu já escrevi sobre isso antes.

Esse ponto deve ser um espectro. Algumas coisas (a maioria das coisas) devem estar à céu aberto. Algumas coisas devem estar escondidas por detrás das cortinas. E algumas coisas devem estar profundamente enfiadas nas dobras da masmorra.

Então, sim: da próxima vez que você decorar uma sala com um mural de um rei derrotado prestando tributo ao seu conquistador, coloque de fato um baú com tesouros nas paredes atrás da pintura de um baú com tesouros (eu mestrei essa masmorra três vezes e ninguém encontrou ele. Eu fico animadinho toda vez que eu descrevo isso para os jogadores).

Também há esqueletos mortos-vivos enterrados na parede atrás das pinturas de esqueletos. Ninguém os nunca os encontrou também. Mas, um dia, um grupo com a dose certa de ganância, esperteza e paciência irá encontrá-los, e isso vai ser incrível.

*1 "dungeon mastery" no original. Aqui o autor faz uma brincadeira com o termo "Dungeon Master", ou "DM", um termo comum em inglês para se referir ao "mestre do jogo" dos RPGs.
*2 "level-agnostic" no original. Uma brincadeira com o termo "system-agnostic" ou "independente do sistema", que é utilizado para dizer que uma aventura ou algum material de RPG que não tem o seu uso restrito a um sistema de RPG específico.

Uma palavrinha antes de começar:

Salve, salve, pessoal! É com muito prazer que venho compartilhar com vocês o primeiro texto original do blog! Ele foi escrito por mim ao longo de uma semana péssima na qual minha internet caiu e ficou fora do ar por anos. Em meio a esse pequeno apocalipse digital, nas horas nas quais eu não estava trabalhando (ou tentando convencer os atendentes de telemarketing de que os técnicos da internet nem sequer tinham aparecido no meu endereço), eu estava pensando avidamente nos meus projetos de RPG que foram obrigados a ficar estacionados: nas mesas online que tiveram que ser canceladas, nas gravações dos episódios do Tomos Revelados que foram adiadas... e então — talvez movido pela força do ódio em relação à minha (ex) provedora de internet — eu resolvi botar a mão na massa mesmo assim: comecei a escrever um texto sobre minhas reflexões sobre RPG. O texto a seguir foi o que nasceu naquela semana maldita! O formato ficou bem no estilo "ensaístico", levantando algumas ideias e reflexões, mais com a intenção de gerar um debate a partir do meu ponto de vista do que de fato "cravar" uma verdade absoluta.

Além disso, um spoiler bacana: esse texto vai ser publicado (em inglês) na revista Knock! O editor da revista, Josh MCcroo, é um cara muito gente boa (você deveria seguir ele no twitter: ele deve lançar um sistema em breve que aprece incrível, que usa cartas de Tarot ao invés de dados!) Josh foi super solícito, cuidadoso e respeitoso com o meu texto. Essa versão abaixo já conta com algumas das modificações que ele sugeriu (em termos de conteúdo, o que rolou, basicamente, foi que 80% das piadinhas sem graças e das digressões foram cortadas hahah).

Sem mais delongas, aqui vai o texto. Espero que gostem!

 

RPGs são sobre "falhar"

Imagine a seguinte situação: Melion, o elfo, tem 3 pontos de vida. Ele está num castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo. É tudo ou nada. Melion olha para trás, já ouvindo os gritos insanos dos cultistas se aproximando. Ele respira fundo, dá um salto e... pula desajeitadamente, caindo no abismo. Tudo fica escuro. Depois de alguns segundos de desorientação... Melion, o elfo, tem 2 pontos de vida. Ele se encontra em um castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo...

Se você pensou "Nossa, igual um videogame!", você está absolutamente certo! Deixando de lado minha tentativa de fazer piada, permita-me resumir essa cena: Melion, o elfo, falhou ao pular sobre um precipício. Ele cai no abismo, perde "PVs" e volta ao ponto de partida. O conceito de "reiniciar" ou "vidas extras" é algo bem comum nos videogames. A ideia por trás dessa mecânica é simples: "Você falhou! Tente novamente." No entanto, a menos que você esteja jogando um RPG cômico no estilo de Paranoia, o caso do elfo que acabei de descrever certamente geraria protestos e cara feia de todos à mesa.

Mas e se eu dissesse que os jogadores de RPG de mesa fazem coisas semelhantes o tempo todo em suas mesas? Como toda nova forma de mídia ou arte, os RPGs sofrem por serem tratados e interpretados como se fossem análogos a algo que já existe. Foi o mesmo com a fotografia e o mesmo com o cinema. Durante o surgimento do cinema, por exemplo, os primeiros filmes narrativos se pareciam mais com um "teatro filmado". Levou tempo para os cineastas perceberem que a característica fundamental de sua forma de arte não estava em copiar o que era feito no teatro, mas em aproveitar as forças de seu próprio meio (neste caso, o potencial da "edição") para levar sua forma de arte ao seu ápice.

Em seu ensaio intitulado "Regra das Três Pistas", Justin Alexander diz que o problema ao preparar enredos para um cenário de RPG é que isso se parece muito com tentar programar um jogo de computador: muitos Mestres, influenciados pela grande quantidade de filmes e videogames em que uma experiência narrativa linear era o tema central, acabam tratando seus RPGs como se fossem um meio também dominado pela forma da narrativa linear. Portanto, diz Alexander, esse tipo de Mestre acaba "programando respostas predefinidas", como alguém criando um jogo de computador. Este é um dos maiores problemas que os RPGs enfrentam hoje: a noção de que os RPGs são uma forma de "contar histórias", assim como os filmes. Que os RPGs precisam antecipar certas ações dos jogadores, assim como certos videogames fazem. E, já que são uma "história", é necessário ter um "roteiro", antecipar eventos e guiar os jogadores ao longo desta história previamente escrita, belamente costurada pelo Mestre. Isso não se parece justamente com o caso de um filme querendo ser um "teatro filmado"?

Desde a publicação do ensaio de Justin Alexander, acredito que avançamos muito nessa questão. A dica "Não force sua história nos jogadores, construa a história junto com seus jogadores durante o jogo" agora é muito mais difundida na comunidade do RPG. No entanto, acho que esse conselho não é suficiente. Além disso, ele acaba obscurecendo uma questão muito mais radical que considero essencial para nossa "forma de arte" (se é que podemos chamar assim): Os jogos no estilo RPG, como o nome sugere, são (surpreendentemente) um jogo. Qualquer tentativa de transformar os RPGs em uma forma de narrativa antes de ser um jogo será um equívoco. Dito isso, não estou criticando os chamados jogos "narrativistas". Pelo contrário: admiro muito este estilo de RPG precisamente porque um bom jogo narrativista usa suas mecânicas e dinâmicas para direcionar o grupo a um novo lugar, preparando um palco espetacular para os jogadores interpretarem de maneiras muito específicas.

Com isso, não quero dizer que os RPGs e os videogames não são bons canais para contar histórias, desenvolver narrativas e criar experiências compartilhadas. Muito pelo contrário: acho que ambos os meios são as formas mais radicais de se fazer isso. Meu ponto é que, por mais que a construção de uma narrativa seja algo intrínseco a um RPG, ela é produzida de maneira muito distinta de uma obra de ficção precisamente porque o ato de jogar vem antes de todo o resto. Enquanto tratarmos os livros de RPG como literatura ou livros de história, enquanto criarmos aventuras de RPG com a estrutura narrativa do cinema e com mecânicas de videogame, não estaremos extraindo todo o potencial desse meio.

(Eu não sou o tipo de pessoa que gosta de estragar a diversão alheia. De forma alguma estou dizendo: "Você deve jogar de determinada maneira porque o que você está jogando não é um RPG de verdade!" Essa é a graça dos RPGs: não há linha de código impedindo você. Vá em frente, faça o que quiser, jogue da maneira que parecer mais divertida. Quebre as regras do sistema!)

Sobre o que são os RPGs de mesa, afinal? 

Para mim, os RPGs são sobre "falhar". Em nenhum outro tipo de jogo sou capaz de falhar em paz. Os RPGs me permitem fazer isso. Olhe nosso exemplo inicial, por exemplo. O pobre elfo Melion, tentando pular sobre o abismo, teve sua falha negada, e toda a sua existência reduzida a uma paródia de Super Mario. Como jogador de RPG, acredito que um jogo que não respeita minhas escolhas (ou melhor, que não se preocupa com as consequências de minhas ações) está sempre caminhando para o desastre. Como jogador de RPG, gosto de acreditar que (1) sou livre para escolher como agir; e que (2) seja qual for o resultado de minhas ações, qualquer que seja a ação de meu personagem, o jogo apresentará consequências significativas. Nada mais, fora do RPG de mesa, pode unir harmoniosamente esses dois pontos.

Depois de cair do penhasco, um mestre de jogo mais complacente poderia pedir a Melion para fazer um teste de Sorte e — veja só! — ele acaba não morrendo afinal. Ele simplesmente cai no rio. Talvez Melion sofra um dano massivo pela queda, quebrando as pernas quando atinge a água. Pelos deuses, Melion poderia até mesmo morrer! Mas em uma boa sessão de RPG, até mesmo esse erro fatal teria criado ramificações emocionantes de uma maneira que não pode ser produzida em nenhum outro tipo de jogo. Por exemplo: Melion morre, mas o rio arrasta seu corpo diretamente para sua cidade natal, para o horror de seus parentes que o haviam avisado do perigo que espreitava no castelo abandonado no topo da colina. A partir daí, o Mestre poderia dizer que a vila de Melion nunca mais ajudaria os aventureiros que o deixaram morrer e pararia de fornecer a eles suas ervas mágicas. Tenho certeza de que, depois de ler meus exemplos, você também pensou em várias outras consequências relevantes e intrigantes para a morte do pobre Melion. Os RPGs são um meio que permitem que as mentes paranoicas e inquietas se satisfaçam ao conectarem pontos de necessidade e verossimilhança entre eventos que anteriormente não tinham nenhuma ligação.

Em resumo: nos RPGs, o jogo não termina quando um personagem falha. Pelo contrário, o jogo tem a capacidade de continuar e se tornar ainda mais interessante do que era momentos antes. Os RPGs não são apenas uma forma de contar histórias de grandes heróis e sua jornada inevitável em direção ao sucesso, mas um jogo que tem a capacidade inigualável de ir literalmente a qualquer lugar e lidar com qualquer eventualidade. Respeitar o fracasso do jogador significa respeitar a força de um meio que pode sustentar as verdadeiras consequências das decisões de um jogador, sejam elas quais forem. Em outras palavras, a capacidade deste meio de transformar qualquer evento em combustível para criar ainda mais jogo é incomparável. Falhar em um RPG pode ser tão divertido quanto vencer. Isso é o que torna os RPGs tão únicos.

Título original: "A 16 HP Dragon"
Escrito originalmente pelo usuário "stras" em forma de comentário 
no fórum online do Dungeon World em 14 de maio de 2012, e transposto para o site oficial de Sage LaTorra em 15 de maio de 2012.
Traduzido por Felipe Tuller

 

Nas discussões do fórum de Dungeon World, o usuário "stras" deu um exemplo de jogo que descreve perfeitamente por que me importo tanto com DW a ponto de dedicar todo esse esforço a ele:

"Azato,

Todos nós jogamos centenas de videogames e RPGs 'clássicos' (com os tropos clássicos de fantasia), nos quais aprendemos que lutar contra o monstro é uma questão de causar pequenos golpes suficientes para derrubá-lo enquanto vivemos o suficiente para fazê-lo (o modelo de WoW ou Final Fantasy).

Mas em Tolkien, Smaug devastou uma vila, matou milhares, e foi morto por uma única flecha colocada precisamente em uma brecha de sua escama.

Pense nessas lutas mais em termos de literatura e ritmo, em vez do clássico 'ele tem X de pontos de vida e temos que bater Y vezes com Q acertos para derrubá-lo'. O problema neste contexto é que não há ficção sendo levada em consideração, esta é uma solução mecânica (uma simulação) de uma espada consistentemente causando dano e ajustando os pontos de vida do monstro para permitir o mesmo método (bater) seja aplicado a todo problema (monstro).

Eu tive esse problema. Eu tive que voltar no texto quatro vezes quando li que um DRAGÃO tem 16 pontos de vida (um ranger de nível 1 pode causar isso ao rolar dano máximo). No entanto, deixe-me descrever um combate para você e talvez isso lhe dê uma 'noção' do que está acontecendo.

Então: o grupo precisava de um item mágico, e eles pesquisaram e descobriram que um herói empunhando o referido item foi morto por um dragão. Eles recebem algumas informações de um servo de um dragão em forma dracônico-humana, e vão lá e roubam o referido item. Lembre-se, "item mágico" neste mundo não significa 'mágico' no sentido de 'arma +1', e sim que esta lança pode perfurar almas e por isso é necessária para derrotar um rei feiticeiro. Ok, então temos um dragão muito zangado prestes a atacar algo. Lembrando: 16 pontos de vida - preparado?

O grupo está cavalgando de volta à cidade, pronto para um bom banho quente, reabastecer suprimentos (suas rações estavam acabando) e um foco renovado em caçar o rei feiticeiro. A lua some por um segundo, eles sentem o vento mudar, e então algo pousa sobre o prédio da prefeitura com um estrondo enorme. Eles têm apenas alguns segundos para piscar antes de verem uma cabeça reptiliana serpentear para baixo e rasgar um guarda vestindo cota de malha com um único golpe (prenuncia uma ruindade futura, este é o rótulo 'grotesco')*1. Eles aumentam a velocidade e seguem em direção à cidade. Eu boto um papel na mesa, e rapidamente desenho algumas ruas sinuosas, esboço algumas casas quadradas, boto um dado grande para representar o dragão. Enquanto eles estão prestes a entrar, eu pego um punhado de fichas vermelhas e descrevo a inalação que eles sentem de longe, e as palavras em língua dracônica, e basicamente despejo um monte de coisas vermelhas na cidade e explico que está pegando fogo e como as chamas estão sendo moldadas e comandadas pelo dragão.

Seus cavalos enlouquecem. Eles conseguem desmontar (alguns levando um pouco de dano de um cavalo correndo em pânico e um deles sendo atingido por um galho). Eles começam a avançar por essa paisagem infernal, onde uma sombra disforme descia e partia alguém ao meio, e pessoas queimando até a morte imploram por misericórdia e ajuda enquanto seguram crianças enfaixadas se transformando em cinzas em seus braços.

O grupo começa a ajudar os moradores da cidade (o lugar não possui fonte de magia, então o mago não pode simplesmente criar um ritual de chuva) quando um prédio se despedaça com o pouso de uma criatura de 4 ou 5 toneladas, e ele abre suas narinas, seus olhos dourados queimando e sua pele metálica ressoando com um rugido (aterrorizante).

Seus companheiros se dispersam, os PJs têm que desafiar seu próprio terror para atacar a criatura. Eles causam um dano negligenciável ("aêê!" para a armadura 4) para aqueles que CONSEGUEM FAZER alguma coisa, e percebem que a única pessoa que tem uma chance de matar aquilo é o mago com feitiços de penetração de armadura. Infelizmente, o dragão percebe o mesmo.

O que se segue é horrível. Um guerreiro assume posição defensiva, quando o dragão acerta ele não causa só 1d10+5 de dano, ele arranca o braço dele fora ("grotesco", lembra?) e rasga sua cota de malha como se fosse papel. Ele usa ataques de sopro de fogo que fazem TODOS eles Desafiarem o Perigo ou queimarem*2.

O grupo se separa e foge. O dragão ri e se acomoda ali para reduzir a vila a cinzas e comer todos os sobrevivente.

O Dragão tinha 16 pontos de vida. O grupo deu 9 de dano antes de ir embora. E quando eu disse "ir embora", quero dizer que eles correram como coelhos pela noite com poucas provisões, nenhum meio fácil de recuperá-las e nenhum pensamento em suas cabeças além de sobreviver.

A moral da história é: não é sobre pontos de vida. No meu jogo de D&D 4e, o grupo tinha uma dúzia de mortes de dragões em seu currículo. Os dragões eram ameaçadores mecanicamente, eram ardilosos, eram táticos, mas suas garras e dentes não causavam "dano", eles causavam "números". Depois desta sessão, eles explicaram que nunca tinham ficado tão assustados com um monstro.

Torne as lutas algo épico. Use a ficção. Descreva a pele deles enegrecendo por conta do fogo. Os ossos se partindo pelo agarrão de pedra inescapável do elemental de terra. A maioria das lutas apaga a ficção ao dizer que você sofre 5 de dano. Faça ela permanecer, torne-a difícil de curar, deixe-os marcados e endurecidos pela batalha, tendo conquistado cada cicatriz, e em cada ferida uma história.

Você não precisa de 2.500 pontos de vida para tornar um combate algo difícil ou assustador."


 *1 "Rótulo 'grotesco'", "'messy' tag" no original. Faz referência a um dos elementos do bloco de estatísticas de um monstro no sistema Dungeon World. Segundo o manual, "rótulos" descrevem como os monstros causam dano e o alcance de seus ataques. O rótulo "grotesco" especificamente diz respeito aos efeitos destrutivos de uma criatura e/ou de uma arma (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 339).

*2 "Desafiar o perigo", "Defy danger" no original. Faz referência à mecânica de "movimentos", peça central em jogos "powered by the apocalypse". Segundo o manual, o movimento de "Desafiar o perigo" é desencadeado quando um personagem precisar "agir apesar de qualquer perigo iminente" ou for "sofrer alguma calamidade" (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 56).

Título original: "The OSR Should Die: Basic Edition" Escrito originalmente por Marcia B. no seu blog intitulado "Traverse Fantasy" em 29 de outubro de 2023. 
Traduzido por Felipe Tuller. 
Links originais foram mantidos como hyperlinks ao invés de notas de rodapé. Novos links também foram adicionados ao texto, para facilitar a busca dos leitores pelas obras e livros citados.
Original post released under the creative commons CC BY-NC-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/) 
 

Esta é uma revisão da minha postagem de 2022, reduzida para publicação na Knock! e também para fins de esclarecimento.

O OSR já está morto? Se você perguntar a alguns, eles dirão que sim. Havia um corpo de conhecimento cultural que se tornou inacessível (por alguma razão) para os hobistas que estão trabalhando no mesmo espaço. O que é antigo é novo novamente, então as pessoas estão falando sobre encontros aleatórios e rolagens de reação como se as tivessem descoberto por conta própria, assim como Cristóvão Colombo descobrindo as Américas. Eles não foram os primeiros lá, e, se você perguntasse a Ramanan Sivaranjan do blog Save Vs. Total Party Kill, ninguém tinha ido embora também. O OSR não está morto porque ela ainda está lá, assim como outros da época do G+ que ainda estão fazendo suas próprias coisas. Como algo pode estar morto e vivo ao mesmo tempo? Pode ser uma discordância de definições. Pode também ser um zumbi.

Uma definição competente da OSR é difícil de se chegar porque qualquer definição atrairá controvérsias de grupos que se autoidentificam com o termo. Essas partes não são necessariamente mutuamente exclusivas entre si, mas tendem a incorporar perspectivas particulares sobre o termo devido a seus diferentes períodos, redes sociais ou atividades (incluindo jeito de jogar, de se comunicar e de se organizar, entre outros fatores). Tentar inventar ou afirmar uma definição de OSR é em si participar do discurso que envolve a OSR. É autorreferencial e, frequentemente, autocentrado. Vale a pena, em vez disso, considerar a multiplicidade do OSR como um significante vazio (ou seja, um significante que não significa nada), para entender por que as pessoas tentam responder à pergunta "O que é a OSR?" Ao fazer isso, podemos criticar não apenas a aparente existência de um OSR único e verdadeiro, mas também o papel que o simples termo 'OSR' desempenha na criação de identidades coletivas por meio de falsas histórias imaginadas.

A história de alguma coisa sempre será enviesada para uma única visão em detrimento de outra. Portanto, não vou considerar a história de uma OSR específica ou de um desdobramento saído dessa vertente, mas sim do termo 'OSR' e a que ele foi aplicado. Em seguida, abordarei o que acredito ser a verdadeira questão em foco: não quando a OSR 'real' começou e terminou, mas por que esse termo ('a OSR') foi adotado por diferentes grupos com interesses e relações diferentes com o hobby: jogadores hardcore de AD&D, blogueiros de D&D "faça você mesmo" ou editoras comerciais de livros.

2000 - 2009 

O termo "OSR", seja ele "renascimento da velha escola" ou "renascença da velha escola" originou-se no início dos anos 2000. Foi usado principalmente por jogadores de Advanced Dungeons & Dragons no site de fãs Dragonsfoot. Dungeons & Dragons, Terceira Edição acabara de ser publicada pela Wizards of the Coast, e ela representava — ou talvez impunha — uma nova direção de jogo para a marca Dungeons & Dragons (embora isso já tivesse sido previsto com o lançamento de suplementos para a AD&D Segunda Edição, especialmente o Combat & Tactics). Enquanto isso, o Dragonsfoot publicava materiais para campanhas de AD&D ainda em andamento, e aqueles que se sentiam deixados para trás pela Wizards of the Coast ou mesmo pela TSR pós-Gygax (os editores originais de D&D) encontraram um novo lar. No entanto, muitos temiam que, sem suporte oficial, a base de jogadores desses jogos extintos desaparecesse e tudo fosse esquecido.

A Terceira Edição apresentou um problema, mas também uma solução. Devido à promíscua Open Game License (OGL) originada pela Wizards of the Coast para seu novo jogo, a comunidade OSR do Dragonsfoot foi capacitada a publicar retroclones que reproduziam fielmente as regras e mecânicas dos primeiros livros de regras do D&D, ou as remixavam para se adequar mais ao sistema d20 da Terceira Edição: Castles & Crusades (2004), OSRIC (2006), Basic Fantasy RPG (2007), Labyrinth Lord (2007), Swords & Wizardry (2008). Esse é o fim da história para alguns, talvez exemplificado pela morte de Gary Gygax em 2008.

No entanto, para outros, isso era um começo. James Maliszewski começou seu blog Grognardia em 2008. Seu primeiro post era uma cópia da OGL, declarando que todos os materiais em seu blog estavam sob essa licença. Seu segundo post chamava-se "O que é um Grognard?", no qual ele estabelece a declaração de missão de seu blog:

Os grognards de RPG são popularmente considerados caras gordos e barbudos que falam sem parar sobre como as coisas eram melhores 'na minha época' antes que 'os jovens' estragassem tudo. Eu não acho que a história dos RPGs desde 1974 tenha sido de um declínio contínuo, mas acredito que muitas coisas boas foram perdidas ou pelo menos esquecidas desde então. Um dos propósitos deste blog é discutir essas coisas boas e sua importância e aplicabilidade para o hobby hoje.
James Maliszewski, "O que é um Grognard", 2008.

Maliszewski argumentou em outro lugar que o OSR "não tem um grande princípio unificador além de um amor [...] por RPGs, especialmente Dungeons & Dragons" (e suas edições mais antigas), mas, ao invés de ser um 'revival' reacionário, incluía a força criativa de uma 'renascença'. Ele disse que muitas pessoas que se identificavam com o OSR estavam simplesmente jogando da maneira que queriam jogar, e fazendo isso por conta própria ("faça você mesmo") em vez de receber esse estilo de jogo de um livro vendido para eles. Isso é melhor representado pelo guia de Matthew J. Finch, "Uma Rápida Introdução ao Estilo de Jogo Old School", que esboça princípios como: arbitragens, não regras; habilidade do jogador, não habilidade do personagem; heróis, não super-heróis; e abandonando o equilíbrio de jogo. Muitas dessas máximas contradizem o ethos do jogo sancionado pela TSR e rejeitam os conselhos de Gygax em Advanced D&D. Independentemente disso, devido ao fervor do movimento em se estabelecer, estavam sendo criados materiais que não eram retroclones, mas, ao invés disso, obras completamente novas que (aparentemente) compartilhavam um ethos de design com aquelas edições de D&D mais antigas. O OSR ainda estava em sua infância, conclui Maliszewski, e se isso tudo resultaria em uma renascença propriamente dita, portanto, ainda estava por se fazer.

O artigo de Maliszewski não está isento de um olhar otimista. John B. de The Retired Adventurer considera a renascença da velha escola como "uma reinvenção romântica, não uma cadeia ininterrupta da tradição". Isso pode ser atribuído a uma mudança de foco em algum momento entre 1999 e 2009, de continuar jogando AD&D para jogar de acordo com um estilo específico que foi teorizado de tal forma em blogs, etc. No entanto, não é uma descontinuidade total: desde o início, os primeiros membros do auto-identificado OSR adotaram uma abordagem "faça você mesmo" porque seus estilos de jogo não eram mais suportados por publicações oficiais de D&D. Sendo um movimento centralizado em uma única plataforma, não demorou muito para que um estilo de jogo único predominasse na cultura dessa comunidade. Ao mesmo tempo, esse estilo de jogo tem a aparência de algo redescoberto ao invés de algo criado, com legitimidade derivada dessa aparente tradição.

Não há sentido em discutir onde uma linha divisória deve ser traçada entre um OSR 'real' e um OSR 'falso' entre 2000-2009, ou entre um suposto revival e renascença. Não apenas porque muitas das mesmas pessoas participaram do OSR até 2009 e do OSR para além dessa data, mas porque a tendência da OSR em se tornar um 'movimento' e uma 'cultura' existia desde o início. Sua origem, estritamente falando, não era nada de novo: eram jogadores de AD&D (menos frequentemente de outras edições) rememorando publicações de D&D antes da Terceira Edição, ou mesmo antes da Segunda Edição. A produção de materiais culturais por esta comunidade, seja em tópicos de fóruns, postagens de blogs ou livros de regras, culminou necessariamente em uma renascença, já que o ato de criação e introspecção resulta em algo novo instruído pelo passado e pelo presente. O princípio unificador do OSR em qualquer momento é a nostalgia por um ideal perdido, cuja realidade nunca foi perdida, mas estava constantemente em processo de ser criada em retrospectiva.

2010 - 2019 

Em 2011, o Google lançou a rede social Google+ ou G+, onde os usuários interagem em grupos ou comunidades específicas, em vez de sempre se dirigirem a um grande grupo de "amigos". O G+ se integrou à plataforma de blogs Blogger, que o Google adquiriu anteriormente em 2003. Não seria essa a melhor maneira de discutir o hobby, de compartilhar postagens de blog e organizar campanhas online? Portanto, o G+ se tornou um centro de atividades à medida que o OSR superava os fóruns do Dragonsfoot, tanto em tamanho quanto em ideologia. O OSR inicial, sendo um renascimento do interesse em AD&D, já estava obscurecido nos anos anteriores por um interesse em outras edições de D&D e o desejo de concretizar as ideias que (aparentemente) elas codificavam. A comunidade G+ se desenvolveu a partir desse contexto e produziu grande parte da sabedoria comum que agora muitas vezes consideramos como certa sem pensar. Ela elaborou a partir do OSR como um estilo de jogo, em vez de um renascimento de apreciação pela literatura da TSR. Esta é a era que muitos identificam como o OSR propriamente dito (ou, melhor dizendo, o momento no qual se deveria estar), especialmente aqueles que participaram disso. Compilei muitas postagens de blog seminais na página "Pedra chave" do meu blog!

Esse período também foi marcado por novas publicações de livros. Estes não eram retroclones, e sim manuais de regras inovadores cujas regras derivavam das discussões da comunidade. Às vezes, eram caracterizados por cenários de jogo autorais. Entre eles, o principal foi "Lamentations of the Flame Princess" (2011). Anteriormente uma marca para novas aventuras OSR, como Death Frost Doom, o manual titular foi baseado em B/X com um tema de heavy metal. Da mesma forma, Dungeon Crawl Classics começou como uma linha de novas aventuras old-school, mas publicou seu próprio manual autointitulado em 2012. Também nesse período estavam Dark Dungeons (2010), Stars Without Number (2010), Neoclassical Geek Revival (2011), Delving Deeper (2012) e Whitehack (2013), entre outros.

Em agosto de 2012, Timothy Brannan declarou que  OSR estava morto. Se o objetivo era reintroduzir e popularizar alguma visão de jogo old-school para um público em geral, isso já havia sido alcançado. A comunidade continuaria, segundo ele, mas precisava de novos objetivos. Anteriormente, em janeiro daquele ano, Tavis Allison também proclamou a morte do OSR. Tendo alcançado algum sucesso mainstream na publicação, ele via o novo objetivo como expandir o mercado consumidor para publicações OSR sem comprometer sua visão (ao mesmo tempo em que também estava ciente dos fracassos do modelo de publicação tradicional de que Gygax e outros tiravam vantagem). Ele conclui: "O OSR está morto, vida longa ao OSR!"

O que aconteceu entre as declarações de Allison e Brannan foi o anúncio do D&D Next em maio de 2012, o play-test aberto para o que seria publicado como D&D, Quinta Edição em 2014. Mike Mearls, um de seus principais designers, queria pegar a deixa do OSR para seu design. Embora essa edição tenha se tornado o protótipo da cultura de jogo "neo-tradicional", como prefigurado pelo popular podcast Critical Role, ela foi inicialmente celebrada como o tão aguardado retorno do D&D à tradição old-school:

Os jogos no estilo OSR atualmente representam mais de 9% do mercado de RPG, de acordo com o Hot Role-playing Games da ENWorld. Se considerarmos a Quinta Edição de Dungeons & Dragons como parte desse movimento, são quase 70% de todo o mercado de RPG. O OSR se tornou mainstream. Se o OSR significa Renascença da Velha Escola, parece que a Renascença acabou: D&D, em todas as suas edições anteriores, é agora como a maioria de nós joga nossos RPGs.
Mike Tresca, ENWorld, 2015

Enquanto isso, as publicações no G+ do lado talvez morto, talvez vivo do OSR estavam seguindo um novo caminho, instruído não pelo antigo D&D, mas por uma tendência de reduzir as regras formais ao mínimo possível. A ideia era que isso facilitaria as arbitragens do árbitro e encorajaria os jogadores a ir além do livro para interagir com o jogo. Desde que a Wizards of the Coast disponibilizou digitalmente as edições antigas de D&D a partir de 2012, também havia menos preocupação em preservar os (supostos) livros de regras old-school originais. Por que comprar um retroclone quando você pode comprar o original? As publicações se tornaram mais experimentais, com Into the Odd (2014), The Black Hack (2016) e Knave (2017) sendo os principais representantes. Muitos identificam, portanto, esse período a partir de meados de 2015 em diante como algo próprio, distinto dos anos anteriores da comunidade G+, caracterizado por uma crescente tangencialidade e comercialismo.

O OSR tornou-se mais aparentado a uma vaga palavra de marketing do que um indicador de compatibilidade com o D&D da era da TSR. No entanto, é difícil traçar uma linha no exato ponto no qual uma categoria tenha sido mais valorizada do que as outras. Old School Essentials (2019), por exemplo, um retroclone popular de B/X, coexiste com Electric Bastionland (2019), Mörk Borg (2019) e The Ultraviolet Grasslands (2018), que estão mais distantes do contexto original do OSR. A única coisa certa é que o OSR tornou-se cada vez mais comercial, e mais trabalhos estavam sendo publicados do que nunca.

2020+: O Fim? 

Em dezembro de 2018, o Google anunciou que encerraria o G+ em abril de 2019. Tendo servido como um ponto central para muitos blogs e campanhas online durante a década de 2010, a comunidade construída nessa plataforma se tornaria algo como uma galinha sem cabeça correndo em círculos. Poder-se-ia chamar este momento de um trauma coletivo para a comunidade OSR, não porque causou Transtorno de Estresse Pós-Traumático a alguém, mas porque representa uma ruptura na passagem e reprodução do conhecimento cultural.

Agora, não há um ponto focal para a discussão da comunidade. Os blogs estão mais isolados entre si, e existem comunidades pouco conectadas no Twitter, Reddit e pequenos fóruns. Muitos participantes nessas plataformas não têm ideia do que foi feito anteriormente. O acervo de conhecimento cultural, apesar de ainda estar online, é tornado inacessível pela falta de uma comunidade para propagá-lo. O mercado agora é a melhor maneira de transmitir grandes ideias, especialmente com a popularidade de materiais digitais e sua comercialização. Relacionamentos diretos entre membros da comunidade, que antes eram comuns, agora muitas vezes são mediados por meio de trocas indiretas de commodities. Essa não é uma questão moral; é apenas como as coisas são.

Muitos membros da comunidade do G+ ainda não abandonaram seus blogs, assim como os usuários do Dragonsfoot não abandonaram o fórum quando o G+ apareceu. Novatos, assim como seus antecessores, se veem em descontinuidade com o passado recente e enxergam o OSR como uma comunidade há muito tempo desaparecida, em vez de uma ainda acessível e em desenvolvimento até hoje. Há um interesse crescente na comercialização, um princípio declarado de um suposto sucessor do OSR chamado SWORDDREAM, mas ainda existem blogueiros blogando blogs, e grognards ainda reclamando sobre os malditos jovens em seus fóruns que quase ninguém mais lê atualmente.

Cada grupo interessado no estilo de jogo OSR se identifica de alguma forma com o OSR, ou pelo menos define sua identidade em relação ao OSR, mas de maneiras diferentes. O OSR é uma revitalização do AD&D ou de alguma outra edição do jogo pela TSR? É uma renascença de novos materiais, como aventuras e retroclones, compatíveis com esses jogos antigos? É um movimento de design orientado pelo mesmo ethos de jogo do início do D&D? É como pornografia, no sentido de que você reconhece quando vê? Ao invés de dizer que todas essas definições estão corretas, afirmo que todas elas estão erradas: não porque haja uma definição verdadeira do OSR, mas porque o OSR não tem definição. A existência de qualquer suposto OSR é baseada em uma relação imaginada com o passado, uma falsa história à qual se reivindica pertencimento.

Esses primeiros grognards eram muito simples em suas vontades. Eles não gostavam da nova Terceira Edição ou, na verdade, de qualquer coisa publicada desde a saída de Gygax da TSR. À primeira vista, não há muito sendo feito por essas pessoas em um nível produtivo. Todos os materiais sendo criados eram em sua maioria aventuras e regras caseiras, em vez de um trabalho introspectivo sobre o que eles gostavam nesses jogos ou do quê gostariam de ver mais sobre. Eles não precisavam de muito mais do que isso. Por quê precisariam?

No entanto, as sementes de uma identidade OSR já estavam sendo firmadas. Quando as palavras "old school revival" foram digitadas pela primeira vez, não havia mais volta. A partir de então, existia um rótulo com o qual as pessoas podiam se identificar, e ao fazer isso, podiam alinhar seus próprios desejos com os de todo um grupo de pessoas. Essa identidade repousava em um estado de coisas já passado, a era dourada do D&D, e no desejo de retornar lá. Não é que a nostalgia seja inerentemente fundamentada na falsidade (por mais que, frequentemente, tenda a ser), mas que a nostalgia busca afirmar sua história ideal independentemente de seu valor de verdade. A história do D&D presumida pela OSR é algo imaginado que contradiz o passado do jogo em nome de um ideal.

A bandeira do 'OSR' foi sustentada por vários grupos cujos desejos se sobrepunham, se contradiziam, se cruzavam e divergiam novamente. Nenhum deles se colocou sob a bandeira porque eram seus legítimos donos, mas porque a bandeira é um significante de um desejo de retornar ao passado (antes de se transformar totalmente num indicador autorreferencial de "OSRridade"). Isso é tão verdadeiro para os grognards do AD&D quanto para muitos blogueiros do G+. Isso é verdade até hoje, para aqueles que veem o OSR como uma era passada, tanto como um ponto de referência para sua própria identidade quanto como um cadáver maduro pronto para ser colhido. Como Sivaranjan diz, "Eu ainda estou aqui!"

Conclusão

Cada proclamação da morte do OSR depende de uma definição específica do OSR. Quando o OSR "morreu" em 2012, foi porque a comunidade havia atingido o sucesso almejado: a velha escola finalmente havia revivido. Quando o OSR "morreu" em 2019, foi porque uma plataforma significativa foi apagada da internet. No entanto, foi uma morte apenas para aqueles que olharam a ruína depois dos fato e pensaram que tudo havia sido esquecido desde então, sem ninguém para restaurá-la a um estágio antigo.

Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas que estavam lá simplesmente se dispersou para outros lugares, continuando a fazer suas próprias coisas em cantos estranhos da internet. O OSR realmente morrerá, se ainda não morreu? Bem, qual OSR e de que maneira? Essas não são afirmações neutras, e qualquer resposta revela muito mais sobre a relação dessa pessoa com uma comunidade (ou a falta dela) e seu ideal, do que sobre o OSR em si (especialmente como um estilo de jogo). Isso é verdade, quer você ache que o OSR morreu ou ainda está vivo.

Você não pode impedir as pessoas de se identificarem com o OSR. Ele é sinônimo de uma cultura de jogo que foi originada e cultivada por jogadores que se identificaram com o termo. Você também não pode impedir as pessoas de jogarem da maneira que é mais frequentemente descrita como OSR. No entanto, é preocupante ver o mito do OSR ser propagado, especialmente para arbitrar em que ponto algum verdadeiro movimento OSR deixou de existir. Como um estilo de jogo, o OSR não desapareceu e não desaparecerá por um longo tempo. Outro termo pode ser mais descritivo, mas isso não cabe a uma única pessoa decidir.

Como um significante vazio de alguma relação com o passado, é mais fácil dizer que o OSR sempre esteve morto. Nos primórdios, os grognards vestiam as fantasias de Gygax e (menos frequentemente) de Arneson. Eles pensavam que o passado tinha sido esquecido, confundindo-o com sua história ideal. Agora, vestimos as fantasias dos grognards. Quanto mais o OSR "vive", mais morto ele se torna. Vamos parar de fingir.

Deixe-o morrer.

Pós-escrito

Para reiterar, eu reduzi este artigo com a ajuda de Joshua McCroo (obrigada!!) para contribuir com a revista Knock!. Essa foi uma boa oportunidade para aparar as pontas da postagem original. As digressões sobre ontologia orientada a objetos e Lacan não foi muito bem compreendida, a ponto de uma resposta popular ao artigo – apesar do autor ter admitido seu mal-entendido nos comentários – pensar que eu estava usando OOO como base para meu argumento, em vez de usá-lo para construir um argumento falso que eu então critiquei. Esse é o meu blog, não o seu, mas essa foi uma boa razão para revisitar esta postagem e tornar essa crítica específica mais cristalina. Talvez eu devesse escrever uma postagem separada um dia para reclamar sobre OOO, já que usar o OSR para reclamar sobre isso e vice-versa não deu certo. Um pouco confuso!

Para resumir meu adendo:

  • Minha visão não é que o OSR está morto, nem que o OSR está vivo, porque ambas as respostas tentam agarrar uma pergunta ("O OSR está morto?") que é 'politicamente' carregada de ideias sobre o que constitui o OSR como um estilo de jogo, uma comunidade ou uma ideologia. Minha postagem é intitulada "O OSR Deve Morrer" precisamente porque, em muitos aspectos, o OSR não está morto; especificamente, o mito fundador do OSR tende a estar vivo e bem.

  • A qualidade de não ser nem morto nem vivo é algo que confere ao OSR, como significante, uma qualidade meio que de zumbi. A "velha escola" é um mito; se você pode ditar o mito, pode ditar o OSR. Se, em vez disso, abraçarmos o OSR como sendo basicamente sem sentido, adotando a sigla como um significante autorreferencial em vez de acreditar no mito que ele representava ("velha escola"), podemos ter mais flexibilidade e também ver nosso hobby de maneira mais crítica.

    Se você não quisesse ler tudo isso, basta olhar o título da postagem. Não é chamado "O OSR Está Morto", mas "O OSR Deve Morrer". É um pouco dramático, eu sei, mas foi minha tentativa de contornar o debate sobre o status de algum OSR e propor uma pergunta diferente no lugar: você não está cansado de ser restrito pelo mesmo discurso cíclico sobre o OSR? Você não quer só meter o louco?

Espero que isso ajude!

Mais uma coisa: a ilustração de capa do meu retroclone de 1974 Fantastic Medieval Campaigns é baseada neste artigo. Aquilo lá é um cara morto!

 Título original: "Apolitical RPGs Do Not Exist"
Escrito originalmente no blog intitulado "Prismatic Wasteland" em 23 de setembro de 2021. Links originais foram mantidos.
Traduzido por Felipe Tuller

Listas geralmente são ruins. Sempre preferi uma tabela aleatória a uma simples lista. Isso torna as compras de supermercado muito frustrantes, mas também me faz ser cético em relação às listas de "bons meninos" e "maus meninos", especialmente quando não são mantidas por um homem-fera que reside no Polo Norte, mas por fascistas e sua laia. Então, mesmo que eu tente não responder aos últimos "discursos" que assolaram o Twitter, eu já estava bastante frustrado com a lista de criadores de RPG que eram "conscientizados"1 ou "não conscientizados", conforme determinado pelas figuras mais repugnantes que se alimentam das sobras da mesa da OSR2. No entanto, esta postagem, categoricamente, não é sobre essa lista — já foi derramada muita tinta digital sobre esse assunto. Em vez disso, quero discutir uma suposição feita pelos hediondos criadores da lista. Na tentativa de categorizar mais criadores de RPG como sendo simpáticos a suas próprias opiniões, eles listaram vários RPGs e seus criadores como "apolíticos" e equipararam tal apoliticidade como merecedora de inclusão em sua lista dos "bons". Mas isso (entre outras coisas que estão além do escopo desta que espero ser uma postagem misericordiosamente curta) é extremamente equivocado.

Todos os jogos são políticos. Se você ainda não está fazendo fila atrás de mim, concordando com a cabeça e envolto em túnicas de coro de igreja, talvez seja útil definir meus termos. A política é uma categoria ampla. Apenas uma mente fechada pensaria que as contestações entre (ou dentro) dos partidos políticos em democracias são o limite externo da política. Política descreve qualquer conjunto de atividades de um grupo ou grupos para determinar a distribuição de poder e recursos dentro da sociedade. Não são apenas as regras pelas quais a sociedade opera, mas também as regras pelas quais essas regras são criadas e mantidas. A definição mais curta de política é "quem obtém o quê, quando e como". Mas o que é um jogo? Um exemplo útil vem de uma postagem da Marcia em seu blog:

"Qualquer jogo que mereça o título de 'jogo' deve transformar o jogador em um sujeito ao obrigá-lo a desejar, isto é, ao dizer-lhe o que lhe falta. Em 'Hipopótamo Comilão', você se torna um certo hipopótamo comilão que deseja comer mais bolinhas do que os outros hipopótamos comilões."

— Marcia (@chiquitafajita_ no Twitter e demais lugares)

O jogo dá ao(s) jogador(es) um desejo, as regras ditam como ele(s) podem satisfazê-lo. Em 'Hipopótamo Comilão', por exemplo, os hipopótamos desejam as bolinhas (que são recursos), as regras e mecanismos (incorporados fisicamente no próprio tabuleiro) e a distribuição de recursos afetam as relações de poder (apenas um hipopótamo, e seu jogador, são declarados vencedores). Não é preciso viajar muito para enxergar as ideologias em jogo, mesmo em um jogo simples como 'Hipopótamo Comilão': é a sobrevivência do mais forte, do mais rápido, do melhor para devorar aquelas coisinhas pequenas e redondas. Darwinismo social (ou talvez apenas darwinismo — afinal, são hipopótamos). Qualquer jogo pode ser examinado através da mesma lente para ver que a política está presente. Vamos dar uma olhada em um outro jogo de tabuleiro para crianças que representa uma ideologia muito diferente: 'Não Acorde o Papai'3.

'Não Acorde o Papai' é anti-autoritário. A premissa fictícia do jogo de tabuleiro 'Não Acorde o Papai' é que os jogadores são crianças que desejam um lanche da madrugada, mas não devem acordar seu pai, que, por razões desconhecidas, dorme no meio da casa entre o quarto das crianças e a geladeira. O jogo gira em torno de conseguir a comida desejada sem ser pego pelo papai (sendo o papai uma figura de autoridade quintessencial, embora aqui desempenhe mais o papel de policial do que de um deus distante). Novamente, certas regras (por exemplo, para determinar se pisar em patins ou derrubar uma tigela de frutas é suficiente para acordar o pai) estruturam a distribuição de recursos entre os jogadores (quem recebe comida primeiro) e, ao contrário de 'Hipopótamo Comilão', vemos uma dicotomia de poder na ficção. O papai claramente controla o o acesso à comida e decide onde as crianças devem estar e quando (na cama, à noite). Mas o jogo é sobre a subversão dessa relação de poder. Os jogadores não respeitam a estrutura de poder existente e tentam obter os recursos para eles mesmos. Embora isso não seja um golpe violento contra o papai (ao contrário de 'Pule no Papai' de Dr. Seuss4), o jogo pelo menos tem uma mensagem importante sobre a legitimidade das estruturas de poder existentes. E não me faça te lembrar que estamos falando de 'Não Acorde o Papai'. Certamente os RPGs que você joga são mais complicados do que isso.

'Não Acorde o Papai' recria em si mesmo um tropo comum na fantasia: as aventuras de pilhar tesouros do covil de um dragão sem acordar a fera e sofrer sua ira flamejante. Mas em RPGs de mesa, a situação raramente é tão simples. O dragão tem um tipo de poder, um poder literal, em relação aos personagens dos jogadores. Mas provavelmente há outros poderes em jogo: facções na masmorra que podem estar alinhadas a favor ou contra o dragão, ou um reino fora da masmorra que exerce poder político no sentido mais literal. Os jogadores tendem a começar uma campanha em um estado de impotência, mas raramente terminam assim (a não ser que eles acordem o dragão). Mas até estilos de jogo mais simples e clássicos revelam a marca indelével da política. Em certos níveis, personagens ganham seguidores e fortalezas. O que é isso, se não a acumulação de poder e recursos e a canalização desse poder para obter ainda mais poder? Isso tudo é tão típico num jogo como Dungeons & Dragons quanto devorar bolinhas é num jogo de 'Hipopótamo Comilão'.

Então você ainda quer fazer um jogo apolítico? Bem, primeiro você deve se perguntar o porquê. A quem você tem tanto medo de ofender ao vestir a camisa de suas opiniões políticas? Você não quer desmotivar fascistas a comprar seus jogos? Bem, então, cuidado, porque parece que você está criando um jogo para fascistas. Ou então você é um fascista, mas quer que seus jogos passem despercebidos e atraiam os normies? Se isso descreve você, pare de ler meu blog e nunca mais volte aqui. Mas se seus motivos são realmente puros, aqui está como fazer um RPG apolítico:

Passo Um: não dá.

Passo Dois:

Espero ter ajudado!

"Mas se todos os jogos são inerentemente políticos, jogar jogos com temas problemáticos é algo ruim?" Não necessariamente. D&D e sua linhagem estão impregnados de tropos racistas e colonialistas, mas removê-los do jogo não é nenhum grande projeto decolonial. Francamente, não há nada que eu possa dizer sobre este assunto que não seja melhor dito por Zedeck Siew, autor de A Thousand Thousand Islands e outros (se, de alguma forma, você está lendo este blog e ainda não está familiarizado com o trabalho de Zedeck, eu recomendo demais essa análise feita por Vi Huntsman). Zedeck declarou o seguinte (no Twitter, estou reproduzindo apenas uma parte, mas a discussão completa vale a pena ler e reler):

Para aqueles que desejam continuar usando a "linguagem" de D&D -

Adentrar a "terra selvagem" (como se isso não fosse o lar de alguém) para "procurar tesouros" (como se isso não pertencesse a ninguém) e "matar monstros" (monstros para quem?)...

É. São assuntos problemáticos.

E, definitivamente, esses aspectos deveriam deixar mais pessoas desconfortáveis.

Mas é um erro "descolonizar o D&D" varrendo esse conteúdo pra fora do jogo.

Isso me parece ser apagamento; como uma recusa em enfrentar a história / contexto; como uma maneira de aplacar a própria culpa de colonizador.

Lembre-se: se você - branco ou pessoa de cor - vive no Ocidente, ou em um centro urbano asiático (por exemplo), você já está sendo cúmplice do comportamento colonial / capitalista (eles estão inexoravelmente ligados).

Tirar essas coisas dos RPGs pode fazer você se sentir melhor. Mas não mudará quem você é.

Acredito ser mais verdadeiro *e* mais útil não desviar o olhar do colonialismo do D&D.

O fato de avançar sobre a terra selvagem em busca de tesouros e matar monstros ser uma gênero e ser divertido pra cacete nos diz coisas valiosas sobre a forma e a psicologia do colonialismo.

- Zedeck Siew

Se houver algo a ser tirado deste post, é reconhecer que seus jogos são políticos. Até os jogos mais simples e infantis que você possa imaginar são políticos. Mas munido desse conhecimento, você não precisa necessariamente apagar de seus jogos de todo o conteúdo que for gritantemente político. Em vez disso, jogue com intenção. Conviva com seu desconforto. Eu não tenho respostas fáceis para você. 

Título original: "Don't Prep Plot"
Escrito originalmente por Justin Alexander em seu blog intitulado "The Alexandrian" em 23 de março de 2009. Links originais foram mantidos.
Traduzido por Felipe Tuller

Se você está mestrando um roleplaying game, você nunca deve preparar*1 um enredo.

Cada um tem seu próprio gosto. Essas questões são subjetivas. O que funciona para uma pessoa não necessariamente funcionará para outra. Blá, blá, blá.

Mas, sério, não prepare enredos.

Primeiro, uma definição dos termos: Um enredo é a sequência de eventos em uma história.

E o problema ao tentar preparar um enredo para um RPG é que você está tentando predeterminar eventos que ainda não aconteceram. Sua sessão de jogo não é uma história — é um acontecimento. É algo sobre o qual histórias podem ser contadas, mas na gênese do momento, não é uma contação de história. É um fato que está se revelando.

Preparando sem Enredos 

Não prepare enredos, prepare situações.

Qual é a diferença?

Um enredo é uma sequência de eventos: A acontece, depois B acontece, depois C acontece. (Em formas mais complicadas, a sequência de eventos pode se ramificar como em um livro de Choose Your Own Adventure*2, mas o princípio permanece o mesmo.)

Uma situação, por outro lado, é apenas um conjunto de circunstâncias. Os eventos que ocorrem como resultado dessa situação dependerão das ações que os PJs tomarem.

Por exemplo, um enredo pode parecer assim: "Perseguindo os vilões que escaparam durante a sessão da semana passada, os PJs entrarão em um navio com destino à cidade portuária de Tharsis. Durante a viagem, eles avistarão um navio abandonado. Eles embarcarão no navio abandonado e descobrirão que um dos vilões se transformou em um monstro e matou toda a tripulação... exceto por um único sobrevivente. Eles lutarão contra o monstro e resgatarão o sobrevivente. Enquanto eles estão lutando contra o monstro, o navio abandonado terá flutuado para o território aquático de Tharsis. Eles serão interceptados por uma frota de Tharsis. Uma vez que a história deles for contada, eles serão recebidos em Tharsis como heróis por seu ousado resgate do navio abandonado. Seguindo uma pista dada pelo sobrevivente do navio abandonado, eles subirão o Monte Tharsis e chegarão ao Templo de Olympus. Eles podem então vagar e questionar as pessoas pelo templo. Isso não dará nenhum resultado, mas quando chegarem ao santuário central do templo, os vilões tentarão assassiná-los. A tentativa de assassinato dá errado, e o ídolo mágico no centro do templo é destruído. Infelizmente, esse ídolo é a única coisa que segura o templo sobre a costa da montanha — sem ele, o templo inteiro começa a escorregar pela montanha enquanto a batalha continua a ocorrer entre os PJs e os vilões!"

(Essa passagem é derivada de uma aventura publicada que realmente existe. Os nomes e o contexto foram alterados para proteger os inocentes. Pontos extras para quem conseguir identificar corretamente a fonte original.)

Uma situação, por outro lado, se parece com o seguinte: "Os vilões escaparam em dois navios em direção a Tharsis. Um dos vilões se transforma durante a viagem em um terrível monstro e mata a tripulação, deixando o navio flutuando abandonado pelas águas costeiras de Tharsis. Em tal e tal momento, o navio será avistado pela frota de Tharsis. Os outros vilões chegaram ao Templo de Olympus no topo do Monte Tharsis e assumiram identidades falsas."

O SEGREDO SUJO

Muitas pessoas se sentem intimidadas pela ideia de preparar sem um enredo. Parece ser muito trabalho. Se os jogadores podem fazer qualquer coisa, como você deve lidar com isso?

O segredo sujo, porém, é que, na verdade, é muito mais difícil preparar enredos do que situações.

Para entender o motivo, vamos analisar mais de perto nosso exemplo de uma aventura com enredo. É uma sequência de eventos bem entrelaçados que, quando desmembrados, se parece com o seguinte:

  1. Os PJs perseguem os vilões. (E se eles não o fizerem?)
  2. Os PJs precisam segui-los de navio. (E se decidirem seguir pela costa? Ou teletransportarem?)
  3. Os PJs precisam avistar a embarcação abandonada. (E se falharem em seu teste de Percepção?)
  4. Os PJs precisam entrar na embarcação abandonada. (E se simplesmente navegarem para longe dela?)
  5. Os PJs precisam resgatar o sobrevivente. (E se eles falharem? Ou optarem por fugir antes de perceber que o sobrevivente está lá?)
  6. Os PJs precisam questionar o sobrevivente. (E se decidirem não pressionar um homem ferido?)
  7. Os PJs precisam ir para o santuário central do templo.
  8. A tentativa de assassinato dos PJs precisa se desenrolar de uma maneira muito específica.

O que você está vendo é uma cadeia de potenciais pontos de falha. Cada um desses pontos é criado forçosamente com um resultado específico e esperado... e se esse resultado não ocorrer, o mestre fica encarregado de direcionar*3 os jogadores de volta aos trilhos que ele preparou.

Em oposição a isso, vamos ver o que precisamos para projetar essa mesma aventura como uma situação:

  1. Os PJs precisam perseguir os vilões. (Este é o gancho para o cenário como um todo. É um ponto potencial de falha compartilhado por todos os cenários. Se os PJs não estiverem interessados em ir à toca do dragão vermelho, não importa como você preparou a toca.)
  2. Você precisa criar a cidade de Tharsis. (Onde fica? Como é? O que os PJs podem fazer lá? Etc.)
  3. Você precisa criar a embarcação abandonada.
  4. Você precisa criar o Templo de Olympus.
  5. Você precisa criar estatísticas para a frota de Tharsis, os vilões e (possivelmente) o sobrevivente.
  6. Deve haver uma maneira de os PJs saberem que os vilões estão se escondendo no Templo de Olympus. (No design baseado em enredo, este é um dos pontos de falha: ou eles questionam o sobrevivente ou não têm como saber para onde ir em seguida. No design baseado em situação, você usaria a Regra das Três Pistas e daria conta de dois métodos adicionais pelos quais os PJs poderiam chegar a essa conclusão. Isso pode ser tão simples quanto fazer um teste de Obter Informações em Tharsis e/ou questionar o capitão/tripulação do navio que os vilões se apossaram.)

Aqui está o segredo sujo: olhe atentamente para essa lista. Com exceção do nº 6, todas essas são coisas que você também precisava preparar para a seu design baseado em enredo. (E até o nº 6 já está um terço completa.)

Aqui vai uma analogia: O design baseado em situação é como entregar aos jogadores um mapa e dizer "descubram para onde estão indo". O design baseado em enredo, por outro lado, é como entregar aos jogadores um mapa no qual uma rota específica foi desenhada com tinta invisível... e depois exigir que eles sigam esse caminho invisível.

DESIGN ROBUSTO

A vantagem da preparação baseada em situação é que ela é robusta. Surpreendentemente, no entanto, essa robustez não requer muito trabalho extra. Na verdade, como mostramos, normalmente ela dá muito menos trabalho. Aqui estão algumas coisas a serem consideradas ao fazer uma preparação baseada em situação.

REGRA DAS TRÊS PISTAS: Já dediquei um extenso ensaio à Regra das Três Pistas. Basicamente, a Regra das Três Pistas afirma o seguinte: Para qualquer conclusão que você deseja que os PJs alcancem, inclua pelo menos três pistas.*4

A teoria é que, mesmo que os jogadores percam duas pistas, você tem chances muito boas de que eles encontrem a terceira e resolvam a situação.

A Regra das Três Pistas s também pode ser aplicada ao design de aventuras em geral: Para qualquer problema em uma aventura, você deve sempre preparar pelo menos uma solução e permanecer aberto a quaisquer soluções potenciais que seus jogadores possam inventar. Mas para qualquer ponto de obstrução problemático (quer dizer: "um problema que deve ser superado para que a aventura continue"), tente incluir três rotas possíveis para o sucesso.

Isso pode parecer muito trabalho, mas esses caminhos distintos não precisam necessariamente ser complicados. (Na verdade, não devem ser.) Por exemplo, um problema pode ser: "Mickey Dee tem uma informação que os PJs precisam". As soluções podem ser tão simples quanto (1) nocauteá-lo e pegá-la; (2) negociar com ele para recebê-la; ou (3) entrar sorrateiramente em seu escritório e roubá-la. A preparação que você faz para qualquer uma dessas soluções cuida de 99% da preparação para as outras duas.

Deve ser observado que, apenas porque uma solução específica é algo "simples", não significa que o cenário será (ou deverá ser) simples. A complexidade do cenário emerge da maneira como uma determinada série de problemas é superada. E a boa notícia sobre a preparação baseada em situação é que você não precisa descobrir exatamente como esses problemas serão encadeados — isso surge naturalmente a partir das ações tomadas pelos PJs.

OPONENTES VISANDO OBJETIVOS: Ao invés de tentar adivinhar o que seus PJs farão e depois tentar planejar reações específicas para cada possibilidade, simplesmente pergunte a si mesmo: "O que o vilão está tentando fazer?"

A maneira mais eficaz de preparar esse material dependerá dos detalhes do cenário que você está criando. Talvez não seja mais do que uma lista sequencial de objetivos. Ou pode ser uma linha do tempo detalhada.

Note que alguns cenários não serão baseados em vilões tentando realizar algum ardil específico. Eles podem estar apenas vivendo a vida como de costume até que os PJs decidem aparecer e zoar tudo. Em outras palavras, o "objetivo" não precisa ser nada mais do que "manter a rotação dos guardas funcionando".

Se você estiver interessado em ver esse tipo de preparação em ação, eu disponibilizei um exemplo extenso de uso de linhas do tempo detalhadas retiradas da minha própria campanha. (Meus jogadores não devem clicar nesse link.)

NÃO PLANEJE CONTINGÊNCIAS ESPECÍFICAS: Independentemente da abordagem que você escolher, o ponto central é que geralmente você estará delineando o que aconteceria se os PJs não se envolvessem. Se você tiver algumas ideias sobre planos contingentes, vá em frente e anote-as, mas não gaste muito tempo com elas.

Digo "gaste seu tempo" porque é exatamente isso que a maioria do planejamento de contingência é. A estrutura básica do planejamento de contingência é: Se os PJs interferirem no ponto X, então os vilões fazem X2. Se os PJs interferirem no ponto Y, então os vilões fazem Y2. Se os PJs interferirem no ponto Z, então os vilões fazem Z2.

É claro que, se os PJs não interferirem no ponto X, então todo o tempo que você gastou preparando a contingência X2 será completamente desperdiçado. Ainda mais importante: se os PJs interferirem no ponto X, então os pontos Y e Z geralmente serão fundamentalmente alterados ou deixarão até de existir — então todo o trabalho de preparação que foi gasto em Y2 e Z2 também será desperdiçado.

É neste sentido que a preparação baseada em situações geralmente é criticada por exigir trabalho extra: as pessoas acham que precisam tentar se preparar para todas as ações concebíveis que os PJs podem tomar. Mas, na verdade, isso não é preparação baseada em situações. Isso é preparação baseada em enredos turbinada com esteroides de "Choose Your Own Adventure". É o tipo de preparação que você precisaria fazer se estivesse programando um jogo de computador.

Mas você não está programando um jogo de computador. Você está preparando um cenário para um RPG. Quando os PJs escolhem fazer X, Y ou Z (ou A, B ou C), você não precisa de uma reação pré-programada. Você está sentado bem ali, à mesa com eles. Você pode simplesmente reagir.

CONHEÇA SUA CAIXA DE FERRAMENTAS: Para reagir, você precisa conhecer sua caixa de ferramentas. Se os PJs começarem a investigar o Lorde Bane, que recursos ele tem para impedi-los? Se eles sitiarem o complexo dos escravizadores, quais são as defesas do local?

Ferramentas típicas incluem pessoal, equipamento, locais físicos e informações.

Por exemplo, se os PJs estiverem investigando um líder da máfia local, você pode saber que:

  1. Ele tem alguns pelotões de capangas, um assassino treinado em sua equipe e dois guarda-costas. Você também pode saber que possui uma ex-esposa e tem dois filhos. (Esses são todos tipos de pessoal.)
  2. Ele mora em uma mansão no lado leste, frequenta regularmente seu cassino ilegal de alto nível no porão secreto de um arranha-céu no centro e também tem um esconderijo montado em uma taverna decadente. (Esses são todos locais físicos.)
  3. Ele possui formas de chantagear um dos PJs. (Isso é informação.)
  4. Ele subornou um policial local. (Isso é um tipo diferente de pessoal.) 

E assim como em uma caixa de ferramentas real, você deve ter alguma noção da utilidade das ferramentas. Você sabe que um martelo se usa com pregos e uma chave de fenda se usa com parafusos. Da mesma forma, você sabe que o grupo de capangas pode ser usado para espancar os PJs como forma de aviso ou para proteger o esconderijo. Você sabe que a ex-esposa pode ser usada como fonte de informações sobre o sistema de segurança da mansão. E assim por diante.

Você pode pensar nisso como um planejamento de contingência não específico. Você não está se dando um martelo e depois planejando exatamente em quais pregos vai bater e com que força: você está se dando um martelo e dizendo: "Bem, se os jogadores me derem qualquer coisa que se pareça minimamente com um prego, eu já sei o que usar para bater."

(Por exemplo, você sabe que a ex-esposa está familiarizada com os detalhes das operações de seu marido e com a segurança da mansão. Isso é o martelo. O que você não precisa descobrir é como os PJs obtêm essas informações dela: Talvez eles apenas perguntem a ela gentilmente. Ou subornem ela. Ou ofereçam proteção a ela. Ou coloquem um grampo nela. Ou grampeiem seus telefones. Ou sequestrem seus filhos e ameacem matá-los a menos que ela plante uma bomba na mansão de seu marido. Esses são todos pregos. Os jogadores os fornecerão a você.)

O outro truque para projetar sua caixa de ferramentas é organizar os recursos pertinentes em conjuntos utilizáveis. Usemos os pelotões de capangas como exemplo: você poderia tentar acompanhar as ações de cada capanga individual enquanto conduz a aventura, mas isso rapidamente se torna incrivelmente complicado. Ao organizá-los em esquadrões, você se dá uma unidade gerenciável que pode acompanhar.

Por outro lado, não deixe essa organização te acorrentar. Se você precisar de um capanga individual, apenas destaque um deles de um dos pelotões e use-o. Você está desenhando uma floresta porque é mais fácil de mapear — mas se os PJs precisarem cortar lenha, não perca as árvores pela floresta.

CONCLUSÃO

Apesar da minha brincadeira na abertura deste ensaio, não há nada inerentemente errado com o design baseado em enredo. Muitos jogos excelentes foram conduzidos tanto com cenários fortemente baseados em enredos quanto o contrário. E certamente se pode argumentar que "Os jogadores não se importam se estão em uma ferrovia*3, contanto que o trem esteja indo para a Cidade Maravilhosa".

Mas devo admitir que, em minha experiência, a Cidade Maravilhosa geralmente é muito mais incrível quando deixo os PJs escolherem o seu próprio caminho.

Isso acontece porque sou um Mestre tão incrivelmente fantástico que sempre consigo ter jogo de cintura e criar uma improvisação incrível? Talvez. Mas acredito que tenha mais a ver com o fato de que os jogadores são muito bons em saber o que desejam. E se eles elaborarem um plano detalhado para se infiltrar no cassino do chefe da máfia como crupiês e jogadores, provavelmente se divertirão mais vendo esse plano se concretizar do que se eu o esmagasse artificialmente para que eles pudessem voltar à minha "incrível" ideia de sequestrar os filhos do chefe da máfia para usá-los como forma de chantagear sua esposa.

(O que não significa que os PJs devam sempre ter sucesso. Superar adversidades também é incrível. Mas há uma diferença entre um plano que não funciona porque não funcionou e um plano que não funciona porque eu, como Mestre, quero que eles estejam fazendo algo diferente.)

E, deixando de lado essa suposta vantagem do design baseado em enredo, não tenho certeza do que isso deveria estar oferecendo de fato. Por outro lado, as vantagens do design baseado em cenário são enormes:

  1. Ele requer bem menos trabalho para se preparar.
  2. Ele empodera os jogadores e torna suas escolhas significativas.

Este último ponto é imprescindível. Para mim, a razão de jogar um RPG é ver o que acontece quando os jogadores fazem escolhas significativas. Em minha experiência, o resultado é quase sempre diferente de qualquer coisa que eu poderia ter antecipado ou planejado.

Se eu quisesse contar uma história aos meus jogadores (o design baseado em enredo se resume a isso, enfim), então seria muito mais eficiente e eficaz simplesmente escrever uma história. Na minha opinião, se você está jogando um RPG, você deve jogar com os pontos fortes do meio: a criatividade mágica que só acontece quando as pessoas se reúnem.

Para exemplos do que estou falando, você também pode ler sobre os Sucessos Inesperados da minha própria mesa. As Gêmeas Mortes de Thuren Issek são particularmente incríveis.

Por outro lado, se você tem um grupo acostumado a ter o Caminho Correto diante de si para poder segui-lo, jogá-los repentinamente no fundo de um cenário aberto pode causar resultados desastrosos, assim como qualquer outra mudança súbita no estilo de jogo. Outros, é claro, se adaptarão imediatamente como peixes jogados na água. Mas se estiver enfrentando problemas, acalme-se e converse com seus jogadores. Explique de que forma o desentendimento está acontecendo. Talvez dê a eles uma cópia deste ensaio para que possam ter uma compreensão melhor do que está acontecendo (e do que não está acontecendo) por trás do escudo do mestre.

Suspeito que, uma vez que saibam que as correntes foram retiradas, eles vão se deleitar com sua liberdade recém-descoberta.


Título original: "How to never describe a dungeon!"
Escrito originalmente por Diogo Nogueira no seu blog intitulado "Old Skulling" em 29 de setembro de 2017.
Traduzido por Felipe Tuller.


Eu já ouvi isso mil vezes. Você provavelmente também já ouviu. Algumas pessoas, eu não sei por quê, dizem que masmorras, especialmente as grandes, são chatas. As infinitas repetições de salas e corredores e ter que escolher ir para a esquerda, direita, norte ou sul os deixa deprimidos. Não sei porquê. Na verdade, eu sei porquê.

Porque eles realmente não sabem como mestrar uma masmorra durante o jogo. Parece fácil, algo que não exige esforço. Basta dizer o que está na sala em que os PJs estão e aonde as passagens vão dar. Mas não é assim. Eles ficam entediados com o tal de "você chega a um cruzamento e há uma porta para o norte e duas passagens, uma indo para o leste e outra para o oeste", porque essa é uma maneira terrível de descrever os arredores de uma masmorra e não apresenta nada realmente útil para os jogadores escolherem.

Nunca descreva uma masmorra assim. Há muito mais acontecendo do que podemos ver inicialmente. Um bom árbitro1 tomará todo o contexto do que era a masmorra, o que ela é agora, quem viveu lá, quem vive lá agora, quem ou o que passou por uma passagem e usar tudo isso para descrever a masmorra, para torná-la viva e real. Se o corredor no leste leva a uma caverna natural coberta de cogumelos e miconídeos, talvez quando os PJs olharem para essa passagem eles verão uma luz fluorescente fraca que emana do musgo estranho que vive lá, e sentirão uma leve brisa fresca soprando daquela direção. Algum musgo pode estar crescendo nesse corredor também. Se a oeste houver um ninho de aranhas gigantes, esse corredor certamente terá mais teias de aranha cobrindo-o do que as outras passagens pelas quais passaram, e algumas delas ainda estarão vibrando, como se algo vivo estivesse tocando a teia.

O que as pessoas que pensam que as masmorras são chatas e repetitivas não entendem é que as masmorras podem ser tão surpreendentes e excitantes quanto qualquer outra coisa (se não mais, já que sob a terra, longe das leis da natureza e da luz ofuscante do sol, qualquer coisa pode existir). E é o trabalho do árbitro passar essa informação e sentimento aos jogadores. Explorar uma masmorra é basicamente um exercício de escolha. Cada quarto, cada corredor, cada passagem oferece uma escolha. Será que entramos? Vamos para o norte, sul, leste, oeste?

E sendo uma escolha, ela só faz sentido se não for uma escolha aleatória. Os jogadores precisam de algumas informações para fazer essa escolha, caso contrário, eles podem simplesmente rolar um dado, ou o árbitro pode escolher para eles. Sendo assim, o árbitro deve fornecer algumas pistas, alguns sinais. Ele precisa apresentar cada escolha dentro de um contexto que possa ser utilizado pelos jogadores para extrapolar o que essa escolha possa levar. Ele não precisa deixar claro e dizer que essa passagem leva ao homem cogumelo e às aranhas gigantes, mas os elementos que ele apresenta devem ter uma conexão com o resultado. Alcançar o resultado certo depende totalmente dos jogadores. É aí que a habilidade do jogador2 entra também.

Então aí está. Nunca descreva uma masmorra de forma fria e simplista como "uma sala com passagens norte, oeste e leste". Pense sobre o que está através dessas passagens. O que passou por essas salas. Pense sobre quais sinais seriam deixados para trás. Que pistas são deixadas para trás para que os PJs possam tentar fazer uma escolha melhor para si mesmos. Dê pelo menos um elemento para basear a sua escolha. Se pudere, dê a eles 3 pistas para cada opção. Pensem nos seus sentidos. Que cheiro eles sentem? O que podem sentir? Eles veem alguma coisa? Eles ouvem algum barulho? Um gosto ruim aparece de repente em sua boca por causa do cheiro que eles sentiram?

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